Terminámos o nosso texto de ontem com uma questão, a saber, o que sentimos diante de um mundo crescentemente padronizado. Uma coisa são os padrões geométricos que nos acompanham desde o início dos tempos, e que existiram em todas as culturas e civilizações. Os padrões geométricos sempre estiveram associados a significados espirituais e a repetição não era um fim em si mesmo, mas sim uma espécie de caminho místico para um centro, para algo de invisível, de superior e transcendente.
Coisa diferente é a repetição “ad nauseam” de uma qualquer forma, sem que isso pareça ter qualquer significado, e não seja caminho para sítio nenhum. Neste caso estaremos já a falar de uma forma padronizada, que nada de místico tem.
Na imagem abaixo vemos padrões oriundos de diversas culturas e épocas. Em todos eles podemos ver formas geométricas que se movem, se transformam, que ganham vida e ritmo. Cada um destes padrões estava associado à revelação de uma qualquer verdade espiritual ou constituía uma imagem semi-hipnótica que nos transportava para um lugar central e transcendente, onde vislumbraríamos algum tipo de divindade ou eternidade. Razões pelas quais, tais padrões aparecem em catedrais, mesquitas, madrassas e em templos ancestrais desde a antiguidades clássica.
Vejamos agora abaixo uma das muitas fotos de Andrea Gursky, na qual ele retrata o mundo padronizado em que vivemos. Apesar de nas imagens de Gursky também vermos um padrão e um ritmo, aqui a repetição parece ser um fim em si mesmo. Nada nos faz pensar, sentir ou caminhar na direção de algo central e transcendente. Não há aqui nenhuma promessa de uma revelação, a repetição não pretende ser um percurso para uma qualquer verdade eterna ou ente invisível, tudo o que há para ver é o o que está à vista.
No Tibete, os monges budistas dedicam imenso tempo à construção das suas mandalas de areia colorida. As formas que constituem os padrões geométricos têm todas profundos significados espirituais. A construção da mandala exige um longo esforço de concentração e um intenso cuidado com mais ínfimos pormenores.
Um simples descuido ou um mero gesto irreflectido, podem deitar tudo a perder e destruir imediatamente todo o trabalho, é por isso fundamental que os monges tenham uma rigorosa disciplina física e mental.
A construção da mandala e a consequente repetição das formas geométricas de modo a formarem um padrão, não são um fim em si mesmo. O objetivo final dessa prática é que os monges se esqueçam e libertem do seu eu individual, e que através da construção da mandala entrem em contacto com o todo universal. Esse todo que é ponto central, no qual teve origem a criação de tudo o que existe: as pedras, as estrelas, os animais, as plantas, as montanhas, os céus, a alma humana e tudo o mais.
Em síntese, a repetição dos gestos e das formas é um caminho espiritual de ascese, ou seja, um modo de entrar em contacto com qualquer coisa de místico, um centro transcendente e invisível. Uma vez concluída a mandala, ela é imediatamente desfeita, pois o importante é o percurso feito durante a sua construção e não propriamente a mandala em si.
Vejamos uma foto de Andreas Gursky que retrata um bloco de habitação situado no bairro de Montparnasse em Paris. Não há dúvida nenhuma que quem concebeu o prédio, o desenhou de acordo com um padrão geométrico, todavia, neste caso não se vislumbra que essa repetição de uma determinada forma nos conduza para lado algum.
Efetivamente quando estamos em certos bairros periféricos das grandes cidades, o que vemos em nosso redor é uma contínua repetição das mesmas formas e padrões, só que, ao contrário do que sucedia nos templos, mesquitas e catedrais, nesse caso não há qualquer caminho místico a percorrer, nem um centro, nem nenhum vislumbre de transcendência.
O que há é o que está à vista, ou seja, um mundo padronizado, em que só há repetição do mesmo, sem que isso tenha qualquer outro significado.
Os padrões geométricos usados em África para pintar o corpo, sobretudo o rosto e as mãos, possuem também eles um profundo significado espiritual. As formas usadas não resultam de qualquer capricho estético ou de uma inspiração momentânea, mas sim de rigorosos códigos há muito estabelecidos.
As formas utilizadas dizem quem são os antepassados, a que tribo se pertence, que deuses se adora, e o que se teme e se espera da vida. Há também padrões próprios para rituais e cerimónias, que se destinam a assinalar nascimentos, casamentos ou atos fúnebres.
Em resumo, muitos dos padrões geométricos originários de África retratam um percurso, ou seja, um caminho que se iniciou há longo tempo, desde a época dos mais longínquos antepassados e que continua pelas etapas decisivas da vida, e se prolonga para lá desta, quando após a morte se vai de encontro aos deuses que regulam a terra, a chuva e a seca, a lua e o sol e os animais na selva.
Há uma fotografia de Andreas Gursky, mais abaixo, que é perfeitamente ilustrativa do nosso padronizado mundo contemporâneo. Enquanto os padrões geométricos presentes nas catedrais cristãs, nas mesquitas islâmicas, nas madalas tibetanas e nas pinturas corporais africanas tinham um significado profundo que nos indicava um caminho, um centro que dava à vida um sentido transcendente e uma sensação de continuidade, as formas repetidas do mundo padronizado de hoje parecem ser só uma reincidência no mesmo e não virem nem irem para lugar algum.
A foto abaixo é de um autódromo no Barém. Se repararmos bem na imagem, percebemos que nela há formas que se repetem, que constituem uma espécie de padrão, mas que não há um caminho para lugar algum. O que há é apenas um circuito ao qual se dá inúmeras voltas sem nunca se sair do mesmo lugar. Ao redor, o deserto.
Não conseguimos olhar para a foto do autódromo do Barém sem sentir uma certa melancolia. A imagem transmite-nos uma sensação de no mundo contemporâneo estarmos condenados a repetir continuamente o mesmo padrão, mas sem que isso nos traga qualquer sentimento de continuidade, de eternidade ou um centro, somente uma impressão de cansaço, de monotonia e de tédio. O deserto só agrava essa noção de inexistência de um qualquer caminho, que não seja apenas uma permanente repetição do mesmo.
Antes de prosseguirmos, aqui fica um link para o nosso texto de ontem, em que falávamos precisamente em como o contínuo repetir do mesmo padrão sem mais nem porquê, nos conduz inevitavelmente a um estado melancólico:
Aqui chegados, a conclusão a retirar é de que os padrões geométricos desde a antiguidade permitiram à humanidade percorrer caminhos que a conduziam a vislumbres do invisível, do infinito e do transcendente, contudo, as formas padronizadas do mundo atual são simplesmente repetitivas e não nos conduzem a lugar algum, apenas e sempre nos levam a olhar para o mesmo, sendo que no centro de tudo há unicamente um melancólico vazio.
Dito isto, e sendo o mundo atual pouco dado a transcendências, a vislumbres do invisível e a caminhos místicos, ainda assim, é possível escapar à melancolia de um mundo padronizado em que ao nosso redor só há uma contínua repetição do mesmo.
Já ontem falámos, e hoje voltamos a falar nos padrões geométricos dos azulejos desenhados por Maria Keil (1914-2012). Numa entrevista dada ao semanário Expresso em 2006 a artista dizia assim: “Há tempos vinha de Setúbal com o meu neto, que agora tem mais de 30 anos, e apanhámos um engarrafamento monstro. Três horas para chegar à ponte. Falámos de muita coisa e a certa altura começámos a falar de religião. Ele dizia-me ter algumas dúvidas, certas coisas que não entende. Eu contei-lhe como é que tenho vivido. Quando era pequena, tive que ir para a catequese para aprender o catecismo. Um dia, o padre foi dizer ao meu pai que eu estava sempre a olhar para um lado e para outro e não dava atenção. Então comecei a dar atenção e vi que aquilo não era para acreditar.”
Lendo as palavras de Maria Keil, percebemos imediatamente que os padrões geométricos dos seus azulejos, não são da mesma estirpe que aqueles que podemos encontrar em catedrais, mesquitas, madrassas e em templos ancestrais. Quer isto dizer que os seus desenhos não nos falam de transcendência, de vislumbres do invisível, de caminhos místicos ou de eternidade.
Na verdade, falam-nos de coisas mais simples, de jogos de cores, da alegria das formas e do prazer de jogar e brincar com padrões geométricos, que parecendo repetirem-se, não se repetem.
Num outro momento da já referida entrevista, Maria afirma o seguinte: “Às vezes apetece-me ir à rua, mas não vou. As pedras da calçada são sempre as mesmas. Chego à porta e estão lá as mesmas coisas todos os dias. Não muda nada.”
Diante de tal afirmação, compreendemos que não haveria de gostar muito do mundo padronizado dos nossos dias. Esse mundo exige a muitos uma vida com raras alegrias, com poucas ou nenhumas possibilidades de brincar e jogar e em que o prazer é escasso ou mesmo inexistente. Esses muitos levantam-se diariamente pelas madrugadas para trabalhar e somente regressam a casa ao fim dia.
Nessas monótonas e repetidas deslocações de ida e volta, casa-trabalho, trabalho-casa, não são poucos os que viajam de metro. Há poucos lugares mais áridos e aborrecidos que uma estação de metropolitano, contudo, são muitas as de Lisboa, que estão ornamentadas com azulejos com padrões geométricos desenhados por Maria Keil. Assim sendo, num percurso que em princípio seria entediante e fatigante, há apontamentos de jogo, de brincadeiras, de prazer e de alegria.
Terminamos com uma imagem de um painel de azulejos Maria Keil, na Estação Avenida, que é bem ilustrativa de como a geometria pode ser uma festa para os olhos no dia a dia.
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