Dizíamos
ontem, na primeira parte deste nosso texto, que este blog existe para tentar
desarrumar ideias, sobretudo, as ideias feitas. Mais do que isso, dissemos
também, que relativamente à educação, muitas vezes os documentos oficiais usam
uma linguagem seca e burocrática, ou seja, utilizam palavras demasiado
arrumadas.
Mas
dito isto, há uma exceção, no caso, o Plano Nacional das Artes, iniciativa
conjunta do Ministério da Educação e do da Cultura. A linguagem aí usada é
outra, muito menos acomodada. Com efeito, nesse plano aparecem-nos palavras
inabituais em documentos oficiais, como por exemplo, desejo, aldeia, paciência,
tarefa infinita, indisciplinar, indestinar, zás trás e outras mais.
Antes
de prosseguirmos, aqui fica o link com o que ontem dissemos e publicámos. Link
a partir do qual, também se pode encontrar o glossário do Plano Nacional das
Artes:
https://ifperfilxxi.blogspot.com/2024/12/porque-existimos-para-desarrumar-to-be.html
Há
muitos modos de desarrumar ideias, mas nem todos são bons. A nós interessa-nos
uma forma de desarrumar ideias, que é a melhor de todas, a saber, com arte. Não
que sejamos artistas, nada disso, no entanto, acreditamos que existimos para
que as ideias de quem nos lê se desarrumem ao ver, contemplar e pensar nos
exemplos de pintura, escultura, literatura, cinema, música, fotografia, arquitetura
e, claro está, também de dança, que por aqui vamos de vez em quando
apresentando.
Desarrumar
ideias consiste em desarrumar olhares, palavras, sons, conceitos, atitudes,
certezas, práticas e verdades. No fundo, desarrumar permite que se veja tudo de
uma outra forma, ou seja, ter distintas perspectivas e horizontes mais vastos e
largos. A imaginação e a criatividade artísticas são a terra donde brota e
cresce uma outra terra e um outro mundo, os quais não estão limitados por
constrangimentos impostos pelas exíguas verdades e pela acanhada realidade.
Em
certo sentido, quase se poderia dizer, que desarrumar ideias é a essência da
educação. Com efeito, educar não é tão-somente transmitir conhecimentos, é
também, e fundamentalmente, imaginar, criar, agitar mentes, ensinar a questionar
verdades, abrir horizontes, desbravar caminhos e despertar curiosidades. Sendo
que tudo isso, consiste no fundo, precisamente em desarrumar ideias, sobretudo,
as feitas.
O
filósofo Friedrich Nietzsche, disse-nos um dia que “Temos a arte para não morrer ou enlouquecer perante a verdade. Somente
a arte pode transfigurar o desarranjo do mundo em beleza e tornar aceitável,
tudo aquilo que há de problemático e terrível na vida”.
Abaixo
o retrato de Friedrich Nietzsche por Edward Munch, uma obra de 1906, que faz
parte da coleção do Museu Munch em Oslo:
Desde
que o mundo é mundo, que este anda desarrumado e desarranjado, é essa a sua
condição normal, espontânea e natural. Mas os homens, desde sempre que tentam
dar-lhe uma ordem, limitá-lo e obrigá-lo a que se constranja às suas ideias. Em
resumo, os homens empenharam-se em arrumar o mundo.
“Há mais mistérios entre o céu e a
terra do que sonha a nossa vã filosofia”, disse um dia
William Shakespeare, querendo com isso dizer, que as ideias humanas são sempre
curtas para o quão vasto e ilimitado é o mundo e tudo o que nele há e existe.
Para
controlar e limitar o mundo, os homens fizeram leis invioláveis, ergueram
impérios imensos e preceitos inquebráveis. Implementaram regras e rituais, os generais
deram claras directrizes e ordens explícitas, e por elas se travaram terríveis
guerras. Deuses surgiram nos céus com mandamentos eternos, e também sacerdotes,
políticos, professores, médicos e polícias se apresentaram com prescrições para
se seguir no dia-a-dia ao longo da vida.
Nas
repartições, nas casas, nos hospitais, nos exércitos, nas escolas e por todo o
lado existem rígidas regras para cumprir, bastantes delas assentes em ideias
feitas, que não são para se discutir. Ideias tão bem arrumadas nas prateleiras
da existência, que são por muitos tomadas, por verdades indisputáveis e absolutas.
Porém,
o que Nietzsche nos diz, é que a arte pode salvar-nos dessas pesadas verdades,
dessas castrantes ideias feitas, que estão muito bem arrumadas nas prateleiras
da vida. A arte desarruma-as e salva-nos delas, pois dá-nos um vislumbre de um
mundo mais leve, que não se limita a regras impostas, a leis inquestionáveis, a
rituais caducos, a procedimentos obrigatórios, a mandamentos indiscutíveis e a
prescrições imperativas.
A
arte liberta-nos e dá-nos a ver um mundo, que mesmo sendo ideal, utópico ou
imaginário, não é tão-somente feito de ideias feitas, perfeitamente acomodadas
e arrumadas. A arte desobriga-nos de ideias feitas, erguidas à condição de
verdades absolutas, dominadoras e irrecusáveis.
Em síntese, a arte mostra-nos que não existem apenas ideias cinzentas, graves, obrigatórias e burocráticas, pois as ideias podem ter outras cores, mais leves, ágeis, vibrantes e vivas.
Uma
vez tendo nós chegado à conclusão que existimos para desarrumar com arte,
continuemos então agora a fazê-lo, como sempre fizemos, o mesmo é dizer, com
uns quantos exemplos de diversas obras que desarrumaram ideias feitas, fixas e
estabelecidas.
Pensemos
por exemplo num poeta como Alexandre O’Neill (1924-1986). O homem escrevia como
poucos e tinha um domínio exímio da língua portuguesa, porém, um dia deu-lhe
para desarrumar a gramática e, mais em concreto, a pontuação. A partir daí foi
o que se viu.
Compôs
então poemas totalmente desarrumados, contudo, muito engraçados. Os sinais de
pontuação ganharam um protagonismo inusitado e preencheram páginas inteiras de
livros, de cima a baixo.
Na
verdade, em certos desses poemas de O’Neill, poder-se-ia até dizer que os
sinais de pontuação, quase como que são pinturas abstractas ou, quiçá, esculturas
minimalistas. Aparecem-nos a negro sobre um fundo branco, como se fossem
manchas, marcas ou figuras vagamente geométricas ou outras coisas que tal.
Parecem pertencer mais à arte plástica, e não tanto à literatura. Na verdade,
pertencem a ambas ou se calhar a nenhuma, estão desarrumados, fora do seu lugar
habitual, vagueiam, e isso não tem mal algum.
Vejamos
como Alexandre O’Neill desarrumou completamente do seu lugar e pôs na vadiagem,
uma vírgula e um trema:
Desarrumar
palavras, pontos, vírgulas e tremas não exige grandes recursos materiais,
apenas papel, uma caneta, um lápis ou um pincel, e um certo esforço de
imaginação. Todavia, desarrumar edifícios inteiros, isso sim, já é mais
complexo, pois exige mais recursos físicos e humanos e até financeiros. Mas
mesmo assim o sendo, impossível não é.
É
complicado desarrumar o edificado, no entanto, há um arquiteto, que há longos
anos o faz com enorme sucesso, o seu nome é Frank Gehry. Para o dito, um
edifício não tem que ser recto, simétrico ou sequer alinhado e aprumado, pode
muito bem, estar todo desconstruído.
O
desconstrutivismo arquitetónico caracteriza-se pelo desenho dos edifícios
parecer ser uma espécie de caos e por apresentar uma estimulante
imprevisibilidade estrutural. Mas dito isto, poderíamos resumir tudo de uma
forma mais simples, dizendo que Frank Gehry desarruma completamente a gramática
arquitectónica, baralhando noções, conceitos e verdades inquestionáveis.
Demonstra assim, que é possível, erguer do solo um sólido edifício, que
desarruma totalmente uma série de ideias feitas.
Há
quem acredite que a desarrumação em arte é uma coisa recente, uma modernice.
Mas não, tal crença é uma ideia feita e falsa. Em arte, haver algo desarrumado,
não é coisa de agora, é coisa de sempre.
Pensemos
por exemplo, nas antigas naturezas mortas holandesas. Com efeito, são muitas as
pinturas desse estilo e época, em que sobre uma mesa há restos de comida, taças
derrubadas, toalhas tortas, copos por beber, canecas abertas, e tudo o mais que
está por arrumar.
Significa
isto, que a vontade de desconstruir, de dar a ver o que está desarrumado e não
se restringe às regras, ideias, limites, práticas e gramáticas habituais, é
algo que funda e constitui a arte de qualquer época. É precisamente por essa
exacta razão, que ela é, em certo sentido, a essência da educação, pois agita
mentes, ensina a questionar verdades, abre horizontes e caminhos e desperta
curiosidades.
Abaixo
uma natureza morta de Williem Claesz, um dos mais importantes artistas
holandeses do século XVII, como é fácil de constatar, a mesa não está
propriamente levantada, limpa e arrumada.
Voltemos às
ideias feitas, às que parecem estabelecidas e arrumadas, às que se apresentam
como certezas inquestionáveis e verdades absolutas. Pensemos agora numa pintura
de
1656, “Las meninas” de Diego Velázquez.
Diego
Velázquez foi um pintor de corte, tendo longamente trabalhado para o rei Felipe
IV de Espanha. Sendo essa a sua condição, o que se lhe pedia era que criasse
imagens, que glorificassem o rei e respectiva família e demais nobres elementos
da corte real. Em “Las Meninas” aparece-nos em primeiro plano a Infanta
Margarida Teresa e as suas damas de companhia, uma chaperone, um guarda-costas,
duas anãs suas amigas e um cão. Ao fundo está um espelho que reflete o rei
Filipe e a rainha Mariana. Um pouco atrás da Infanta está o próprio Velázquez,
que se representa a si mesmo trabalhando numa grande tela.
Ora
bem, sendo “Las meninas” uma pintura de corte, tudo é suposto estar arrumado,
cada qual no seu lugar, exibindo a respectiva pose. Era essa a ideia feita que
existia (e existe) relativamente a um retrato oficial das mais dignas figuras
do reino ou da nação.
A
um primeiro olhar tal regra parece cumprir-se, todos estão onde deveriam estar,
contudo, Velázquez era um artista, consequentemente, desarrumou tudo e num
segundo olhar, vamos verificar que ninguém está exactamente onde está.
Como
espectadores, ao nos colocarmos diante de “Las meninas”, olhamos e percebemos
que também somos olhados. Ao centro, a Infanta Margarida olha para fora do
quadro, para quem está diante dela: nós. O mesmo faz a aia, à sua direita.
Também
Velázquez, que se encontra à esquerda no quadro, por detrás de uma grande tela
e a segurar pincéis e uma paleta, dirige o seu olhar para quem está à sua
frente, mais uma vez, nós, que olhamos e somos olhados.
Como vemos apenas
a parte de trás da tela, levanta-se-nos uma dúvida: será que Velázquez está a
pintar “Las Meninas”? Ou será que está a pintar quem está diante dele, já fora
do quadro, ou seja, nós que o observamos? Quem é na verdade, observador e
observado?
Se quisermos
complicar mais a situação, vemos que no fundo da sala há um espelho e que nele
estão refletidos dois personagens, o rei Filipe IV e a rainha, parecem estar
colocados fora do espaço da pintura, ou seja, numa posição similar à nossa, à
do observador. No entanto, mesmo estando a observar, são também eles
simultaneamente observados, no caso, por nós.
“Las
meninas” é um tratado de filosofia da arte, dá-nos a ver que a arte é esse contínuo
encontro, esse entrecruzar de olhares entre quem vê e quem é visto. Em resumo,
a única conclusão possível, é a de que toda a gente está fora do seu local
habitual, desarrumado do sítio onde costuma estar.
Mas claro está, tendo a arte uma contínua e infinita vontade de desarrumar, Picasso pegou em “Las meninas” e desconstruiu-as, ou seja, desarrumou-as mais um bocadinho:
E pronto, terminamos por aqui a defesa desta nossa ideia, que existimos para desarrumar. Por nós esta conversa está arrumada, haja quem a desarrume.
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