As escolas primárias do centro de Paris já quase não existem, que pena! (Capítulo II: Obrigam-nos a partir, “On est en colère”)
Começámos ontem uma conversa neste blog acerca das escolas primárias do centro de Paris, que recentemente têm vindo a ser encerradas. São às centenas os lugares de professor que têm sido extintos nos últimos anos bem no cerne da capital gaulesa. Como consequência, o coração da Cidade Luz enche-se crescentemente de turistas e de especuladores, e vai-se esvaziando para sempre de crianças.
Os protestos sucedem-se e as poucas escolas que resistem estão sobrelotadas, havendo já bastantes turmas que abarcam vários níveis de escolaridade. Enquanto tudo isso se passa, os negócios ligados ao turismo de massas e ao sector imobiliário prosperam, vão de vento em popa e adivinha-se-lhes um futuro risonho.
Houve um tempo em que escolas e crianças eram a grande aposta para o futuro, agora já não são, as apostas atualmente são outras. De há um tempo para cá, quase todas as semanas há manifestações em Paris contra a sucessão de encerramentos de estabelecimentos escolares. “On est en colère !", é o que mais se ouve dizer hoje em dia a pais, professores e alunos parisienses.
Paris é uma cidade célebre por muitas razões, mas é-o também pelos grandes fotógrafos que a retrataram a ela e às suas escolas. Um deles chamava-se Robert Doisneau. Ao longo de várias décadas de meados do século XX, Doisneau captou com a lente da sua máquina fotográfica a vida e o ambiente das ruas do centro de Paris, ao tempo em que aí havia milhares de crianças a frequentar as escolas primárias.
Foi de Doisneau que ontem falámos no primeiro capítulo de “As escolas primárias do centro de Paris já quase não existem, que pena!” (https://ifperfilxxi.blogspot.com/2025/03/as-escolas-primarias-do-centro-de-paris.html)
Hoje vamos continuar a escrever sobre o tempo em que existiam escolas primárias e crianças no centro de Paris. Como nova companhia para a nossa viagem deste dia, teremos um outro enorme fotógrafo, Wily Ronis (1910-2009).
Abaixo uma foto da sua autoria de 1948, em que se vê a rapaziada a sair da escola, a meter pernas a caminho e a ir à sua vida.
Robert Doisneau é o mais popular dos fotógrafos de Paris, quando estamos na capital francesa deparamo-nos com imagens suas a cada instante, todavia, o prestigiado e muito afamado Oxford Companion to the Photograph, que é considerado como uma espécie de Bíblia da fotografia, diz-nos que Willy Ronis é “the photographer of Paris par excellence”.
Na verdade, a nossa ideia poética e mental da alma de Paris é composta por imagens desses dois grandes fotógrafos. Para nós, ambos são os fotógrafos parisienses “par excellence”.
Ontem dizíamos que as fotografias de Robert Doisneau são compostas por uma mistura de humor, ironia e ternura, hoje poderíamos dizer quase o mesmo das imagens de Willy Ronis, só não o dizemos, porque este último não tem uma veia humorística tão acentuada como o primeiro.
Digamos assim, as imagens de Doisneau põe-nos imediatamente a sorrir, pois o fotógrafo procurou conscientemente retratar um momento de graça, um instante terno e divertido, não sendo esse o caso de Ronis.
Repare-se por exemplo na foto abaixo de Doisneau intitulada “Calcul mental”.
Compare-se agora a foto acima de Doisneau, com a que se segue de Willy Ronis. Nesta mais abaixo constatamos que a graça não é tão instantânea e imediata como na primeira. Verificamos também que o fotógrafo não quis tanto retratar um momento único e surpreendente, mas sim dar a ver algo de usual.
Enquanto o rapaz retratado por Doisneau nos mostra as feições inusitadas, momentâneas e extraordinárias que adquire o seu rosto quando faz contas de cabeça, o rapaz retratado por Ronis ilustra a situação em que cumpre a tarefa longa, habitual e rotineira de fazer uma extensa série de contas em pé.
Vejamos o que nos disse Willy Ronis acerca do seu trabalho: “Nunca procurei o inusitado, o extraordinário, o nunca visto, mas sim o mais simples da nossa existência quotidiana, onde quer que me encontre. O que é importante para mim é a busca sincera e apaixonada pela beleza modesta da vida quotidiana.”
Façamos uma outra comparação entre imagens dos dois fotógrafos para melhor percebermos em que consiste a diferença na sua forma de olhar e de retratar o que naquela época acontecia pelas escolas de Paris.
Comecemos novamente por uma foto de Robert Doisneau. Na imagem abaixo vemos uma professora no preciso instante em que os seus gestos, como que se assemelham a uma dança ou a um voo. É um momento extraordinário e invulgar. Contém em si algo de singular, que faz com que ao para ele olhar, num ápice esbocemos um sorriso.
Vejamos agora uma outra foto de uma professora com os seus alunos, mas desta vez uma de Willy Ronis, esta que abaixo se segue. Ao contrário do que sucede na antecedente, nesta imagem tudo se passa como amiúde.
A docente traz a sua turma em fila, nada de excepcional sucede e, ao que tudo indica, todos regressam à sala de aula após o recreio, fazendo-o da mesma exata forma como o terão feito em muitos outros dias.
Em síntese, a beleza das imagens de Robert Doisneau resulta de num sítio tão normal e rotineiro como uma escola primária, ele conseguir vislumbrar e captar momentos de excepção, de graça e poesia, já a beleza das imagens de Willy Ronis resulta do oposto, ou seja, de ele conseguir retratar e captar a normalidade e a rotina de todos os dias com graça e poesia.
Vejamos um último exemplo comparativo, e mais uma vez, vamos primeiro a Robert Doisneau. Temos abaixo a imagem de um pequeno aluno no flagrante segundo, em que usando os dedos, realiza uma complexa operação matemática. Contar pelos dedos não é nada de inabitual, todavia, Doisneau captou o momento excepcional em que o vulgar e comum se metamorfoseiam em graça e poesia.
Vejamos agora uma foto semelhante de Willy Ronis. O que abaixo vemos retratado não é só um instante, vemos também um tempo mais largo, um que se distende e alonga. Neste caso, o rosto do aluno parece demonstrar aborrecimento.
Provavelmente sentir-se-ia entediado pela escola mais não ser que uma rotina diária, um contínuo repetir dos mesmos deveres e tarefas, sem que nada de extraordinário suceda. No entanto, Willy Ronis conseguiu retratar essa normalidade, essa aborrecida rotina e esse tempo que se alonga e nunca mais acaba expressado na face do aluno, com arte, graça e poesia.
Em resumo, Doisneau foi um fotógrafo que conseguiu captar aqueles instantes simples mas excepcionais de graça e poesia, que por vezes sucedem nos quotidianos normais e habituais. Por outro lado, Ronis foi o fotógrafo que conseguiu captar a graça e a poesia dos quotidianos normais e habituais, em que nada de excepcional sucede e tudo decorre num tempo longo e que se distende.
As escolas primárias de Paris foram retratadas por alguns dos melhores fotógrafos de sempre, para além dos já referidos Doisneau e Ronis, como por exemplo, pela belga Martine Franck (1938-2012).
Abaixo uma foto de Martine Franck com crianças na escadaria de uma biblioteca escolar.
A fotógrafa norte-americana Marilyn Stafford (1925-2023) também andou por Paris e viu como as entradas e saídas das escolas nem sempre se faziam pelas portas.
E por fim, referimos ainda a suiça Sabine Weiss (1924-2021), que descobriu que em Paris há formas muito divertidas de se ir de casa para a escola e vice-versa.
Por tudo isto, sabemos que a alma de Paris também é constituída pelas escolas primárias que na cidade existiam e a pouco e pouco vão desaparecendo. Vertamos então uma lágrima e deixemos um lamento por um tempo e um mundo cujos últimos resquícios desaparecem agora mesmo diante do nosso olhar.
Comentários
Enviar um comentário