Foi com espanto que vimos o atual primeiro-ministro de Portugal falar à nação no último fim-de-semana. Vimos mas não ouvimos, ou melhor, ouvimos mas não o escutámos com atenção, pois nada ligámos ao que o chefe do governo disse. A verdade é que estávamos concentrados não nas palavras ditas, mas sim na imagem que víamos.
E o que vimos nós, que nos captou tanto a nossa atenção a ponto de nem escutarmos o que o primeiro-ministro comunicava ao país? A resposta é simples, um Sena, pois então. Com efeito, se olharmos para a imagem acima da referida conferência de imprensa, vemos uma imensa obra do artista português António Sena (1941-2024).
A verdade é que na semana passada, a pintura do Sena não estava naquela sala. Muito embora não tenhamos conseguido encontrar absolutamente nenhuma informação oficial ou sequer oficiosa sobre este assunto, cremos poder afirmar, que a obra de António Sena diante da qual o primeiro-ministro se apresentou no passado fim-de-semana à nação é de 1979 e intitula-se “BL-HY”.
Por coincidência, ainda há pouco mais de uma semana, tínhamos dedicado um texto neste blogue às obras de arte instaladas na sala do Palácio de São Bento, no local onde são realizadas as conferências de imprensa. Estávamos então longe de imaginar que, passados apenas uns dias, teríamos de voltar ao mesmo assunto.
Os factos são indiscutíveis, até há bem pouco tempo, quando o primeiro-ministro, falava ao país a partir da sua residência oficial no Palácio de São Bento, fazia-o sempre diante de uma pintura de Eduardo Batarda (1906-1994). Aqui fica a prova:
No entanto, bem recentemente vimos o primeiro-ministro sentado num sofá com vários convidados, numa sala de reuniões do Palácio de São Bento, desta vez tendo por detrás de si um António Palolo (1946-2000). Curiosamente, no passado de fim-de-semana, antes de ter passado à sala das conferências de imprensa, vimos mais uma vez nas TV’s o chefe de governo reunido nessa mesma sala de reuniões, sentado no mesmo no sofá e acompanhado de vários ministros, novamente com o mesmo Palolo por trás.
Foi a propósito de todas estas mudanças de salas e de panos de fundo, que decidimos dissertar há uns dias. Aqui fica o que então dissemos:
Se há uns dias já estranhávamos tantas alterações de pano de fundo em tão pouco tempo, maior foi o nosso espanto quando verificámos que neste entretanto saiu de cena o Batarda e entrou o Sena.
Durante largas décadas, mais precisamente desde o tempo do Salazar, a pintura que esteve na sala de São Bento donde os chefes de governo falam ao país foi sempre a mesma, “Porto Interior de Macau”, um quadro académico e um tanto ou quanto desenxabido, que nos mostra a foz do rio das Pérolas e foi pintado por um tal Fausto Sampaio em 1936, um artista paisagista que, a nosso ver, tinha um estilo que se poderia designar como de “pintor de domingo”.
Foi bom que tenham finalmente tirado do sítio o quadro do tal Fausto Correia, era uma coisa pouco digna. Dito isto, nos últimos tempos tem sido um entra e sai que não mais acaba. Abaixo uma imagem com a instalação de um quadro de Ângelo de Sousa (1938-2011), que também esteve recentemente por São Bento uns tempos, mas que foi rapidamente substituído.
Talvez por ser tão amarelo, o quadro do Ângelo de Sousa poderia dar a ideia de que o primeiro-ministro tinha hepatite ou quaisquer outro tipo de problemas no fígado e não valia a pena correr esse risco.
Feita esta breve introdução, concentremo-nos agora então no António Sena, que esse sim é o nosso tema de hoje. O artista nasceu em Lisboa em 1941 e o seu destino parecia estar traçado, pois a sua família tinha decidido que o rapaz iria seguir a via científica.
Nesse contexto, Sena iniciou um curso no Técnico, depois ainda passou pela Faculdade de Ciências mas, como diziam os antigos, ninguém escapa ao seu destino. Por consequência, desistiu de vez das ciências e pôs-se a desenhar e a pintar, e em boa hora o fez.
Não terá sido fácil que de início o levassem a sério, mais a mais porque o seu estilo tem algo de infantil. Com efeito, se trocar a via científica, que certamente lhe daria uma carreira certa e de prestígio, pela a da via artística, já era em si mesmo um risco, o facto de as obras de António Sena serem fundamentalmente compostas por riscos, garatujas e rabiscos, era algo que também não haveria de ser lá muito bem visto.
Certamente que naquela época terá havido quem pensasse “mas o que é que deu ao António, um moço tão atinado, para deixar as ciências e se ir pôr a fazer riscos?”. Porém, foi nesse momento que a Fundação Gulbenkian, que sempre viu mais à frente, lhe concedeu uma bolsa para que fosse estudar para Londres na Saint Martin’s School of Arts.
Sena ficou por Londres durante longos anos. Ele bem sabia que Portugal era um atraso de vida, e que naquele tempo, por cá, estava destinado a ser um incompreendido. Regressou à pátria em 1975, já com créditos firmados lá por fora.
O que Londres lhe deu foi a possibilidade de ver o que em Portugal dificilmente veria, nesse sentido, encontrou a obra do artista que mais o influenciou, o norte-americano Cy Twombly (1928-2011), do qual vos deixamos a peça abaixo.
Para percebermos as obras de Cy Twombly e de António Sena, temos de entender que ambos procuravam o caminho para regressar a uma espécie de inocência primordial, essa na qual vivemos durante a infância.
Em alguns desenhos de crianças, os adultos normalmente só conseguem ver garatujas, riscos e rabiscos. No entanto, é neles que elas, as crianças, expressam as suas mais fundas sensações e os seus mais intensos sentimentos.
Dir-se-ia que quando as crianças não estão preocupadas em fazer um desenho acerca do qual a professora, o papá ou mamã possam dizer “está muito bonito” ou perguntar “o que é isto?”, elas desenham livremente, sem necessidade de definições, de regras ou de pensarem sequer no que estão a fazer. É como se no papel traços, riscos, garatujas e tudo o mais surgissem por uma qualquer espécie de magia.
É como se uma criança nesses momentos desenhasse num estado de transe, em que não há necessidade de qualquer correção ou retoque, pois por um misterioso automatismo psíquico, tudo flui vindo desde um lugar recôndito do seu ser infantil até à folha de papel.
Abaixo mais uma obra de António Sena em que é bem patente como se deixou inspirar por Cy Twombly e por desenhos de crianças.
Citemos António Sena a propósito do seu processo criativo: “A cor abre-se, em rasgões de luz. Surge a incorporação do cálculo, sobre telas tantas vezes negras, mimando ardósias escolares, onde a escrita e o desvendamento do saber se inscrevem e apagam".
Interessa-nos salientar da citação acima duas palavras, “escrita” e “desvendamento”. Nas obras de António Sena há muitas vezes linhas que parecem palavras, contudo, são irreconhecíveis. Digamos que se trata de uma caligrafia íntima, assente em fundas sensações e em intensos sentimentos, para os quais as palavras conhecidas e que reconhecemos para nada servem.
Digamos que António Sena inventa “palavras pictóricas” para nos desvendar aquilo que nunca foi visto nem dito, o impossível de definir, ou seja, o que existe nas profundezas do nosso ser e não sabemos nem temos palavras para dizer.
Abaixo “Deep”, obra de 1975 de António Sena, que pode ser contemplada no Museu do Chiado. Em “Deep” a escrita é legível mas não interpretável. Há algo de profundo que se mostra e desvenda na escrita íntima dessa pintura, mas que simultaneamente se oculta e apaga.
É quase como no tempo em que éramos crianças e nos primeiríssimos dias de escola víamos no quadro de ardósia algo que nele era escrito e que ainda não compreendíamos, mas que sabíamos ter um qualquer significado. Pouco depois, a professora pegava num apagador e apagava o que no quadro antes estava escrito, crescendo assim em nós uma sensação de mistério e de que tínhamos vislumbrado uma mensagem escrita, que subitamente se ocultou e cujo pleno significado ficou por desvendar. Em síntese, vimos e não vimos.
Dito isto, o facto é que surgindo com um quadro de António Sena por detrás de si, o primeiro-ministro presta um serviço ao país, ou pelo menos a nós. Desvia-nos a atenção das palavras cujo significado já sabemos de cor e salteado e que nada desvendam, e faz com que a nossa atenção se detenha numa escuta feita de palavras íntimas e profundas cujo pleno significado desconhecemos, mas que sabemos dizerem-nos algo de essencial acerca do nosso ser.
Em resumo, o primeiro-ministro é tal e qual a nossa professora primária de antigamente, aparece ao centro, num palanque num plano mais alto do que os alunos, tem por trás de si um quadro, fala mas nós não lhe ligamos muito e acabamos por desviar a nossa atenção para coisas mais fascinantes.
Quando andávamos na escola olhávamos fascinados pela janela para o que se passava na rua, para as nuvens que atravessavam os céus, para as árvores que dançavam ao sabor do vento, para as gotas de chuva que escorriam pelos vidros, agora, já velhos, olhamos para o quadro atrás do primeiro-ministro ao invés de tomar atenção ao que ele diz. Que Sena!
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