Continuamos esta nossa série de Agosto, com textos dedicados a fitas de Verão, hoje o escolhido é “A Lei do Desejo”, filme de 1987, realizado por Pedro Almodóvar. Nos Anos 80 vivia-se por Madrid aquilo a que chamaram La Movida.
Após décadas de ditadura, Madrid era uma cidade que ansiava por liberdade.
La Movida foi a concretização dessa ânsia, foi um tempo que se caracterizou por uma grande liberdade de expressão nas mais diversas áreas, como por exemplo, na música, na moda, no cinema e na arte. No fundo, La Movida reflectia o desejo imenso de modernidade e da abertura que as gentes madrilenas possuíam.
Foi um período muito activo, que incluía também uma vida noctívaga intensa em bares, cafés e discotecas de "culturas alternativas" ou "subterrâneas" (em inglês underground). O dito favorito dessa época era “Madrid me mata”.
Foi no ambiente de La Movida que surgiu o mais célebre cineasta espanhol das últimas décadas, a saber, Pedro Almodóvar. Nesse tempo nada era tabu, tudo se podia dizer e inventar, e se atentarmos bem nos personagens de “A Lei do Desejo”, percebemos imediatamente que a criatividade artística dessa época não se deixava condicionar por regras morais e sociais. Em síntese, foram anos menos conservadores do que os de hoje em dia.
Temos como personagens Pablo, um encenador de teatro de meia-idade, que é abandonado pelo seu jovem amante, Juan, que decide ir viver para uma pequena aldeia piscatória. Temos também Antonio, filho de um importante ministro, que seduz Pablo, o encenador, e que depois se consome em ciúmes ao saber que ele ainda fala com Juan.
Refira-se que Antonio é interpretado por um actor, que anos depois de “A Lei do Desejo”, se viria a tornar um grande galã de Hollywood, e um exemplo típico do “latin lover”, o seu nome é Antonio Banderas.
Temos também Tina, actriz e irmã de Pablo, que algures no tempo mudou de sexo para continuar a manter uma relação incestuosa com o seu pai, uma vez que o seu progenitor preferia mulheres ao invés de homens. Por fim, temos ainda Ada, uma menina de nove ou dez anos, que é filha adoptiva de Tina.
Tina é interpretada pela que é agora a mais consagrada e respeitada actriz de Espanha, a grande Carmen Maura, que actualmente, já com oitenta anos, é uma espécie de instituição no país vizinho. Aqui a vemos na imagem abaixo em “A Lei do Desejo”, há quatro décadas, toda ela encharcada.
A história é complicada e envolve crimes, amores, abandonos, ciúmes, sexo, suspense e mistério, em resumo, tem de tudo. No entanto, não é na narrativa que nós nos vamos centrar, mas sim em duas cenas específicas, as mais bonitas e icónicas deste filme.
Há divas cinematográficas cuja imagem ficou para a história, por em quentes noites de Verão se terem ido refrescar. A mais famosa delas, é a de Marilyn Monroe a apanhar fresco no respiradouro do metro de Nova Iorque no filme “O Pecado Mora ao Lado”, fita a que dedicamos o primeiro texto deste Agosto: https://ifperfilxxi.blogspot.com/2025/07/neste-verao-querem-la-ver-que-ha-fitas.html
Não menos conhecida, é a imagem de Anita Eckberg a banhar-se na Fontana di Trevi, em Roma, na fita de Frederico Fellini, “La Dolce Vita”.
Já a imagem de Carmen Maura toda encharcada numa rua de Madrid, durante uma noite escaldante, não é tão conhecida como as duas anteriores, todavia, merecia-o.
Pablo, o irmão, e Ada, a filha adoptiva, vão com Tina pela rua, nisto deparam-se com um funcionário municipal equipado com uma mangueira. Tina não vai de modas e diz ao dito funcionário “rega-me, rega-me toda”.
Uma outra magnífica cena de “A Lei do Desejo”, passa-se no palco de um teatro. Como já referimos, Pablo é encenador e Tina é actriz, sendo que nesse momento trabalham juntos na peça “A Voz Humana”, um drama escrito por Jean Cocteau em 1930.
“A Voz Humana” é um monólogo, trata-se da história de uma mulher abandonada pelo seu amante, sozinha e à beira da loucura. Ela tem uma conversa final, através do telefone, com o seu amante que a decidiu deixar. A mulher tenta prolongar por todos os meios a conversa e adiar o seu destino, suplica-lhe que não a deixe, que não desligue, mas por fim, é isso mesmo o que sucede.
“A Voz Humana” está carregada de emoções como o desespero, o amor, a angústia e a raiva. A mulher oscila continuamente entre tentativas de compreensão, súplicas e resignação. A peça dá-nos a ver o quão profunda pode ser a dor do amor não correspondido e a solidão humana.
No filme “A Lei do Desejo” vemos um excerto dessa peça, encenada por Pablo e protagonizada por Tina. Ada, a filha adoptiva também aparece. Nessa cena vemos primeiro a mulher e os instantes finais da conversa, até que do outro lado ele desliga. Depois vemos a menina Ada, que desliza pelo palco ao som da canção de Jacques Brel, “Ne me quitte pas”.
Usar a canção de Brel foi uma ideia genial de Pablo, o encenador. Na canção há versos tão tristes e bonitos como por exemplo este, que se escuta na fita:
“Ne me quitte pas
Je ne vais plus pleurer
Je ne vais plus parler
Je me cacherai là
À te regarder
Danser et sourire
Et à t'écouter
Chanter et puis rire
Laisse-moi devenir
L'ombre de ton ombre
L'ombre de ta main
L'ombre de ton chien
Mais
Ne me quitte pas
Para terminarmos, mais uma canção, uma da maior banda de boleros que alguma vez existiu, os mexicanos Los Panchos. A canção faz parte da banda sonora de “A Lei do Desejo” e de algum modo resume toda a trama da película.
Los Panchos tocavam boleros, ou seja, canções que nos falam de desencontros, de desamores, de despedidas, de arrependimentos e de equívocos. Ao fim e ao cabo, os boleros falam-nos do mesmo que nos fala “A Lei do Desejo”.
Com efeito, a fita parece estar envolta no ar do seu tempo, na La Movida e na necessidade que por essa época havia em Madrid de se viver livremente e de se quebrar todos os tabus e mais alguns, mas por debaixo dessa aparência de extrema modernidade, o seu tema é o mesmo de sempre, a saber, acerca do amor e das eternas dúvidas dele decorrentes. Aqui fica Los Panchos, com a canção “Lo dudo”:
E pronto, por agora terminámos, isto até à próxima fita de Verão neste blog.





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