O calor aperta e só apetece despir os corpos, pôr um bikini ou um fato de banho e rumar à praia. À beira-mar ninguém se rala muito de ver ou mostrar corpos quase nus. Todavia, esta tolerância esgota-se no areal e não se estende ao Portugal Digital de 2022.
Vem isto a propósito de num destes dias termos publicado neste blog uma imagem da mais célebre obra de Henri Matisse: “A Dança”. Quadro que se encontra atualmente exposto no Museu do Hermitage em São Petersburgo.
“A Dança” representa cinco bailarinos de peles avermelhadas unidos pelas mãos numa roda. Os corpos movimentam-se sobre uma terra verdejante, numa dança circular, dando a impressão de flutuarem em direção a um fundo azul que evoca os céus do Mediterrâneo.
O primeiro proprietário desta obra, o importante colecionador russo Sergei Schukin expô-la na sua residência (o Palácio Trubetskoy), escrevendo o seguinte numa carta datada de 1909: “O grupo de La Danse parece-me tão nobre que tomei a decisão de desafiar o senso comum burguês e expor os nus na escadaria”.
Aquilo que Sergei Schukin designava em 1909 por “o senso comum burguês”, continua vivo no Portugal Digital de 2022. Conclusão a que chegámos, quando publicámos a imagem dessa obra de Matisse e fomos imediatamente acusados de desrespeitar a comunidade e “colocados de castigo” por vários sites e plataformas on-line.
Com o passar dos anos, “A Dança” tornou-se um símbolo universal da união entre o homem, a terra e os céus. É uma imagem internacionalmente consagrada da reconciliação da humanidade com a natureza. Mas, mais do que isso, é também uma imagem que retrata a união de cada ser humano com a humanidade no seu todo.
As figuras representadas estão imersas numa dança, livres dos seus egoísmos e interesses individuais e concentrados tão-somente no ritmo que conjuntamente criam.
Em síntese, é uma imagem cujo significado é de paz e harmonia.
Pelos vistos, nada disso é suficientemente importante para o Portugal Digital de 2022. Basta que Portugal Digital de 2022 olhe para uma imagem com figuras nuas, que independentemente do seu significado, imediatamente começam os comentários e nos põem de castigo.
No tempo do Ensino à Distância trabalhámos um guião de aprendizagem no qual se abordava o significado do nu na arte.
Usámos imagens de representações escultóricas e pictóricas que iam desde da Pré-história, passando pela antiguidade clássica e até à modernidade. Aparecia uma imagem da República Portuguesa seminua, como é de tradição, e também uma imagem de “A Dança” de Matisse.
Guião de aprendizagem "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
https://drive.google.com/file/d/1pljk3DVISQl28IHeuRcOuXKfwW_sOQYE/view?usp=sharing
Não se dança muito em Portugal. Durante os anos de juventude ainda se vai saindo para dançar, depois disso, pouco ou nada. Se saímos ou vamos a uma festa, passamos mais tempo a olhar e a comentar quem por lá anda, do que propriamente a dançar.
O corpo do “Homo Sapiens Lusitanus” retrai-se e não arrisca passos de dança mais ousados. Provavelmente terá medo sobre o que esses hipotéticos passos pudessem significar para o olhar dos outros. Temos receio sobre o que o nosso corpo possa dizer sobre nós. Não queremos dar azo a comentários. Talvez temamos ficar de castigo.
A dança é uma prática ancestral pela qual desde sempre os indivíduos estabeleceram interações públicas. Permite-nos expressarmo-nos a um nível pessoal, convidando-nos igualmente a socializar. São poucas as atividades com essa dupla condição, a de nos permitir que nos expressemos individualmente, integrando-nos simultaneamente num todo.
Nos nossos guiões de aprendizagem foram muitas as vezes em que tentámos que os miúdos aprendessem a expressar-se através das suas opiniões escritas e orais. Tentámos também que o fizessem igualmente com o corpo, ou seja, que sem inibições atuassem, se mexessem e dançassem.
Em 1962, Dino Risi realizou um filme intitulado “A Ultrapassagem”. Numa célebre cena desse filme, estamos num dia de intenso calor em Roma, numa esplanada de praia. Ao som de “Don’t play that song”, dançam corpos velhos, dançam corpos novos, corpos de rapazes e de raparigas.
Apenas o protagonista não dança, telefona. Mas isso foi em 1962, se fosse no Portugal Digital de 2022, provavelmente estaria a olhar para o seu Smartphone. É muito bem feito que a Signorina Valeria Nizzi não responda à sua chamada e o tenha deixado de castigo. Aqui fica o excerto:
O mundo divide-se entre quem dança e quem fica a olhar.
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