Folhetim de verão - Capítulo Final - Anita regressa às aulas e a falta de professores nas escolas continua
As férias grandes da Professora Anita encaminhavam-se rapidamente para o seu fim, era o dia 31 de agosto. O regresso ao dia-a-dia escolar estava mesmo a chegar. Quanto mais se aproximava esse momento, maior era a sua angústia. Tinham sido umas excelentes férias, mas, paradoxalmente, nada correu conforme o planeado.
Os seus planos iniciais consistiam em passar um tranquilo e repousante mês de Agosto num estabelecimento termal longe do bulício das grandes cidades. Viveria o mês de férias em harmonia com a natureza. Rodeada pela verdejante paisagem natural e pelo ar refrescante que envolve as termas. Deitar-se-ia a horas certas, após uma refeição frugal, e acordaria pelo esplendor da aurora. Alimentar-se-ia com os produtos biológicos produzidos localmente e banhar-se-ia nas águas purificadoras que abundantemente correm das fontes, bicas e torneiras termais.
Os restantes visitantes das termas, seriam com toda a certeza pessoas, que como ela, tinham vindo em busca de paz e sossego, portanto, os encontros e convívios que eventualmente tivesse, também estariam envoltos nessa atmosfera de serenidade. Em resumo, um plano perfeito.
Um dia ou outro, talvez fizesse uma pequena excursão a uma aldeia das redondezas para apreciar a gastronomia local e adquirir algum pitoresco produto do rico artesanato tradicional da região. Claro que se houvesse uma festa popular com uma feira numa das localidades nas imediações do estabelecimento termal, também não desdenharia de ir por lá passear uma noite. Afinal de contas, um dia não são dias, ou seja, neste caso em específico, um dia não são noites.
São sempre tão divertidas as feiras! Há boas petiscadas com queijos, entremeadas, chouriços e outros fumados a acompanhar. Há também bons vinhos saídos diretamente da pipa, desde que não se abuse, um copito de pinga para alegrar a alma nunca fez mal a ninguém. A animação é garantida, pois para além de tudo o mais, nas feiras há sempre um momento musical abrilhantado por um qualquer artista consagrado a nível nacional. Com sorte, podia ser que calhasse ser o Toy e a coisa ainda dava em bailarico. Um pezinho de dança, de quando em vez, cai sempre bem.
Em síntese, estes eram os planos, pensou a Professora Anita, contudo, nada disto se concretizou, o Cunha cruzou-se no seu caminho e os planos foram todos por água abaixo. E ainda bem que esses planos tinham ido todos para o galheiro, foi a conclusão final a que a Professora Anita chegou.
Com efeito, e pensando bem, refletiu a Professora Anita, que raio de ideia lhe teria passado pela cabeça para ter decido ir passar as férias grandes às termas? Ela que sempre tinha sido uma mulher impulsiva, alegre, espontânea e com vontade de correr mundo, tinha decido enterrar-se durante um mês inteiro numas termas perdidas num qualquer fim-de-mundo! Só podia correr mal. Porém, por portas travessas, correndo mal, acabou por correr bem. Como diz o bom povo português, Deus escreve a direito por linhas tortas.
Com toda a certeza, pensou a Professora Anita, tinha chegado a essa triste decisão devido às más companhias. A culpa era toda das suas colegas de escola. Sempre a dizer que estavam cansadas, que os miúdos estavam cada vez piores, que já ninguém respeita os professores, que havia muito burocracia, que só querem é aposentar-se de vez, e que era tudo uma grande miséria. Um ano inteiro destas conversas mói a molécula a uma pessoa, chega-se às férias com o coração cansado de sofrer e só se quer é silêncio, paz e sossego. Essa é que é essa, concluiu a Professora Anita.
Como se não bastasse, essas mesmas colegas, tinham sempre “terras” idílicas, perdidas lá nos confins deste país onde passavam o Natal, as férias e os fins de semana alargados. Cantavam continuamente loas a essas paradisíacas terras, acabando por concluir que lá é que estavam bem, nesses paraísos semi-rurais. Inclusivamente, algumas delas pretendiam gozar a sua reforma a descansar nessas maravilhosas e pacíficas “terras”. Adoravam a “sua terra”, sendo que frequentemente, a “sua terra” mais não era de que um ermo perdido donde era originário um avô já falecido, uma tia distante ou uma sogra embirrante.
Foi a constante repetição deste tipo de conversas, que fez com que a Professora Anita tivesse tido a triste ideia de se ir enterrar nas termas durante as férias. Querem paz e sossego? Querem ir para a terra? Pois vão andando que eu já lá vou ter, disse para si mesmo a Professora Anita. Ainda bem que o Cunha se tinha cruzado no seu caminho e a tinha libertado daquele tédio.
Mas dito isto, havia um problema: o Cunha. A Professora Anita estava decidida que, ainda antes de voltar para o seu dia-a-dia escolar, a sua situação com o Cunha tinha de ficar resolvida. Ficaria o Cunha com ela? Ou para ele tudo tinha sido tão-somente uma aventura estival? Para ela, o Cunha era muito mais do que um amor de verão, conhecia-o há apenas um mês, mas já não se queria imaginar sem ele, facto que a irritava profundamente, enredando-a numa teia ainda maior de complexidades mentais e de “mixed-feelings”.
Mas o pior nem sequer era isso, o pior era que o Cunha escapava completamente ao seu controle. Que transtorno lhe havia de ter calhado, pensava a Professora Anita para consigo, logo a ela, que sempre tinha lidado com os homens como se fosse a sua professora. Não que tivesse tido assim tantos homens, mas os que tinha tido, era como se fossem seus alunos. Dava-lhes ordens, fazia-os temer as suas fúrias ou amuos, e deixava-os de rastros quando os reprovava. Inclusivamente, quando algum se punha com muitos rebeldias, e caso fosse mesmo preciso, não tinha sequer a menor hesitação em pegar no telefone a queixar-se às mães deles do seu mau comportamento e da educação que estas lhes tinham dado. As mães ficavam primeiro enxofradas e depois envergonhadas, vai daí passavam um valente raspanete aos seus meninos que era remédio santo, punham-se logo direitinhos e daí para frente andavam na linha.
A Professora Anita tinha as suas estratégias pedagógicas tão bem afinadas, que inclusivamente, as frases que usava para repreender os homens, eram exatamente as mesmas que usava com os alunos. Vejamos três exemplos. Se um aluno tinha falta de pontualidade ou um homem chegava a desoras a casa já meio toldado, a frase que usava em ambas as situações era “Isto é que são horas de chegar?”. Se porventura um aluno espalhava o material todo por cima carteira ou um homem deixava as roupas, as meias e os sapatos por todas as partes da casa, a frase tipo era “Olha-me lá para isto tudo desarrumado!”. Já no caso de um aluno não ter feito os TPC ou de um homem não ajudar nas tarefas domésticas, saia-lhe logo a frase “E então? Os trabalhos de casa não são para se fazer?”. Na eventualidade de um aluno ter um trabalho pouco cuidado e nitidamente feito a despachar ou de um homem se ter despachado muito rapidamente nas práticas conjugais, a Professora Anita sentenciava imediatamente o assunto com a frase “Não satisfaz, foi tudo feito à pressa!”.
O curioso era que quando a Professora Anita conseguia transformar um homem num lindo menino, ou seja, pontual, esmerado, cumpridor e com uma assiduidade satisfatória, largava-o. Deixava de lhe interessar. No fundo, era como se tivesse cumprido uma missão pedagógica. Como se dissesse para consigo, este já está educado, pode seguir.
Quando os largava, era como se largasse uma turma que ia mudar ciclo, não queria cá choradeiras. O ciclo tinha terminado e agora era altura de partir, não valia a pena fazer dramas. Muitas vezes, quando uns tempos após a separação casualmente os voltava a encontrar (aos homens, entenda-se), até se equivocava e as frases de circunstância que lhe saíam da boca eram as mesmas que dizia aos seus antigos alunos em iguais circunstâncias: gostei muito de te ver, estás tão crescido, diz à tua mãe que lhe mando um beijinho.
Contudo, com o Cunha tudo era diferente. Não aceitava ordens, aquando das suas fúrias retirava-se e ia dar uma volta e parecia estar-se nas tintas quando ela o reprovava. Nem sequer podia queixar-se à sua mãe, pois nem a conhecia e nem sequer sabia se era viva ou morta. Com o Cunha nada do que sempre tinha resultado, resultava. O que fazer com um aluno destes, ou melhor, com um homem destes? Interrogava-se a Professora Anita.
Decidiu ter uma conversa frontal com o Cunha e perguntou-lhe:
- Afinal como é que é?
- Como é que é o quê?
- A nossa vida. Como é que é a nossa vida, o que haveria de ser?
O Cunha lá foi respondendo que tinha a vida dele, que o trabalho na editora o obrigava a vender e a promover manuais escolares pelo país inteiro, que estava em constantes deslocações e que portanto não sabia o que lhe responder. A Professora Anita fez-lhe uma proposta:
- E se largasses a editora e os manuais escolares?
- Eu? Era o que mais me faltava, é o meu ganha pão. Larga tu os manuais escolares.
- Eu? - respondeu a Professora Anita - Se eu largasse os manuais escolares depois fazia o quê com os alunos? Não me dizes? Como é que lhes dava a matéria?
O Cunha sugeriu timidamente, quase a medo, que há outras coisas para se fazer. A Professora Anita virou o rosto para o lado com olhos chorosos. O Cunha limitou-se a tristemente encolher os ombros. A Professora Anita estava prestes a resignar-se a perdê-lo, mas nisto o Cunha falou:
- Menti-te. Na verdade não trabalho em nenhuma editora nem vendo manuais escolares.
- Ai não? - Surpreendeu-se a Professora Anita.
- Na verdade venho da face obscura da lua, aquela que os terráqueos não conhecem.
- Ai sim? - Surpreendeu-se novamente a Professora Anita.
- Há anos que secretamente lá formámos uma comunidade de pessoas desiludidas com a vida. Construímos uma sociedade feliz em que nada se passa como aqui, tudo é muito melhor.
- E o que fazes tu aqui? - Questionou a Professora Anita.
- Trabalho para o Ministério da Educação da Face Obscura da Lua. Os meus superiores enviaram-me a Portugal para recrutar professores desiludidos e com o coração cansado de sofrer com a profissão, que queiram aventurar-se em novas experiências. Que queiram sentir um novo amor pela escola. Muitos já partiram. Será que tu também queres ir? É para te fazer esta pergunta que aqui estou.
A Professora Anita ficou radiante e aceitou imediatamente o convite. Ela sabia que o Cunha se tinha cruzado no seu caminho por alguma razão. Que não podia ser só para a desassossegar.
O Cunha continuou o seu discurso e explicou que nas escolas da Face Obscura da Lua não há manuais escolares, nem salas de aulas estanques, nem matéria e nem exames. E isso resulta, perguntou a Professora Anita. Sim, respondeu o Cunha, os alunos aprendem espantando-se e maravilhando-se com o que descobrem e querem sempre saber mais. Os professores mais não fazem do que ajudá-los nas suas descobertas. E há tanto para descobrir.
- Isso está tudo muito bem - interrompeu a Professora Anita - mas como é que é no que diz respeita à carreira docente? Há escalões? Estão congelados? Há avaliação de professores? Temos de fazer relatórios?
- Nada disso. Na Face Obscura da Lua não há nada disso.
A Professora Anita estava mais do que convencida a partir. Subitamente, ocorreu-lhe uma dúvida. Será que a atual e repentina falta de professores em Portugal não estaria relacionada com estes recrutamentos secretos feitos pelo Ministério da Educação da Face Obscura da Lua? O Cunha sorriu maliciosamente e disse que sim. Após décadas em que havia um enorme excesso de professores em Portugal, de um dia para o outro, assim sem mais nem menos, começou a haver um grande défice. A explicação é simples mas Top-secret: foram já muitos os que com o coração cansado de sofrer, partiram em busca de outros caminhos em direção à Face Obscura da Lua.
No dia seguinte partiram num foguetão que estava escondido num terreno baldio dos arrabaldes. Já nos céus, a Professora Anita espreitava pela escotilha do foguetão observando o planeta Terra envolto em nuvens e pensando para si mesma que tinham sido as melhores férias grandes de sempre. O seu coração, cansado de sofrer, tinha encontrado um novo amor. Tal e qual um extraterrestre, o Cunha tinha-se cruzado no seu caminho. Tinha também encontrado uma nova aventura profissional. Final mais feliz do que este para a sua história era impossível. Para que o momento fosse perfeito, ligou a aparelhagem sonora do foguetão e pôs uma musiquinha a tocar, Caminhos Cruzados de João Gilberto:
https://www.youtube.com/watch?v=D3Hf-725Yk4
Fim
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