A Professora Anita ficou absolutamente extasiada com a exibição canora do Cunha.
Depois disto, como conseguir resistir ao seu convite para ir à praia? Todavia, ainda assim, resistiu. Não aceitou o convite de caras e impôs uma condição.
A Professora Anita é uma senhora assertiva, ou, como se dizia até há bem poucos anos, é teimosa. Se porventura recuássemos ainda mais uns anos no tempo, a expressão usada para qualificar a Professora Anita, não teria sido assertiva nem teimosa, mas sim um vocábulo um tanto ou quanto mais para o rústico. Dir-se-ia que a Professora Anita é mula. Uma senhora mula.
Mas isso era em tempos menos politicamente corretos e com menos fetiches linguísticos de que os nossos. Hoje em dia é preciso muito cuidadinho com o que se diz pois é de muito mau tom usar esse tipo de expressões. Assim sendo, mantenhamos que a Professora Anita é assertiva. Vocábulo que, a bem dizer, até dá uns ares de modernidade, diretividade e eficiência, sendo portanto muito melhor dizer-se assertiva ao invés de teimosa ou mula.
Em conclusão, apesar da Professora Anita ter respondido que sim, que sim senhora, que iria à praia, impôs com assertividade uma condição inegociável: iria tão-somente a uma praia fluvial e não a uma praia de mar. O Cunha da Silva, ainda que meio contrariado, não estava para se maçar com assertividades e concordou. Iriam a uma praia fluvial, pois então.
Chegados à praia fluvial, instalaram-se o melhor que puderam de modo a ficarem abrigados da torreira do sol. A autarquia local tinha requalificado todo o espaço contíguo à margem do rio ajardinando-o com um verdejante relvado, todo ele repleto de lindas palmeiras tropicais. Instalou também um quiosque com comes e bebes e sanitários públicos com loiças de design contemporâneo. Para que nada faltasse aos banhistas fluviais, até rede Wi-Fi gratuita existia. O que era muito prático, pois a autarquia tinha também criado uma App para o uso dos frequentadores da praia. Na App podia saber-se qual era a temperatura da água, a intensidade dos raios ultravioleta e qual era o menu do dia no quiosque. Hoje há favas com chouriço. Em síntese, a praia fluvial estava uma riqueza, um verdadeiro luxo, parecia Ibiza.
O Cunha estendeu despreocupadamente a sua toalha na relva e deitou-se. A Professora Anita foi mais metódica e precavida. Pegou numa cadeira de praia, abriu-a pausadamente, limpou-a com meticulosidade usando um toalhete e depois cobriu-a em toda a sua superfície com a toalha de praia. Verificou igualmente com extremo cuidado se a cadeira estava convenientemente apoiada de modo a não provocar nenhum desequilíbrio e, só então, após todos estes procedimentos preliminares, se acomodou.
A Professora Anita sabe bem o quão importantes são as rotinas: tirar o lápis, abrir o caderno, escrever o sumário…a ela não a apanham desprevenida. Só se acomoda quando cumpre todos os passos de uma rotina e se sente segura, não vá desequilibrar-se, dar uma queda, e passar um enxovalho.
Passados uns instantes, o Cunha ergueu-se e disse que ia ver como é que estava a água. A Professora Anita é uma senhora particularmente atenta a todos os avisos institucionais, circulares e outros documentos oficiais, razão pela qual, já estava devidamente informada e ciente da App relativa à praia fluvial. Olhou diretamente para o Cunha, ordenando-lhe que regressasse à toalha. Sacou então do seu smartphone, descarregou a App autárquica, e numa rápida pesquisa sentenciou: a temperatura da água é de 21° centígrados. O Cunha ficou esclarecido.
A Professora Anita percebeu que tinha impressionado o Cunha com as suas habilidades tecnológicas e pôs-se a fazer conversa a esse propósito. Que o Cunha não se espantasse, que ela tinha frequentado ações de formação de vários níveis para ficar digitalmente capacitada. Há uns tempos atrás passava as passas do Algarve só para participar numa sessão síncrona, agora, depois de estar capacitada, era o que se quisesse, até Kahoot’s já fazia.
O entusiasmo digital da Professora Anita era tal, que passou o resto do dia a falar do assunto. O Cunha não se aborreceu com a conversa, pois ia intercalando breves instantes de atenção em que murmurava um “sim, sim”, com outros períodos em que se deixava passar longamente pelas brasas.
A Professora Anita nem chegou a aperceber-se que o Cunha ia dormitando. Como ele não a interrompeu, não fez barulho, não se levantou do seu sítio e esteve sempre sossegado, para ela, tudo isso eram sinais mais do que evidentes de que o homem lhe estava a dar toda a sua melhor atenção.
A Professora Anita estava enlevada com a atenção que lhe estava a ser dada. Nisto, calou-se, deixando-se ir em sonhadoras reflexões. É certo que o homem levava uma existência aventureira, mas, talvez ela lhe conseguisse ensinar regras de asseio e de arrumo, hábitos de vida saudável e umas quantas rotinas. Se ela o conseguisse, talvez ele pudesse dar um bom marido.
Valia a pena apostar no Cunha, pois ele era diferente da canalha para quem a Professora Anita estava habituada a falar. Esses, se a ouviam, muito bem. Se não a ouviam, que ouvissem. A ela tanto se lhe fazia. Não viessem era depois queixar-se que não tinham percebido nada da matéria e que tinham dúvidas. Tivessem ouvido, era a resposta que lhes dava para arrumar de vez com o assunto. Mas o Cunha era outra coisa. O Cunha ouvia-a atentamente.
A boa disposição reinava na viagem de regresso ao estabelecimento termal após o dia fluvial. O que não estranha, pois o Cunha sentia-se descansado e repousado e a Professora Anita estava a começar a entusiasmar-se com os seus projetos de futuro.
Nisto, o Cunha sai-se com a seguinte tirada:
- Já que a Professora Anita está tão capacitada, não quer ir ao meu quarto para uma sessão síncrona? Eu mostro-lhe o meu manual digital. Numa noite fazemos as páginas todas.
A Professora Anita teve um leve arrepio de frio que lhe atravessou a espinha de cima abaixo. Sentiu, não tanto nas palavras, mas sim no tom em que o Cunha falou, qualquer coisa de insinuante. Mas podia lá ser uma coisa dessas! Um homem tão atento e tão sossegado!
Ao arrepio de frio, seguiram-se umas vagas de calor. Depois um outro arrepio e novos calores. Consultou a App do Instituto Português do Mar e da Atmosfera. A temperatura do ar estava estável e amena.
A Professora Anita estava dividida, confusa. O Cunha liga o autorrádio e ouvem-se os primeiros sons de “Stormy Weather” por Ella Fitzgerald:
https://www.youtube.com/watch?v=k3LYJd1WjWo
E agora? Que fazer? Ir ou não ir?
Como será que vai reagir a Professora Anita? Fugirá a sete pés do Cunha da Silva? Sentirá frio? Ou calor? Irá a correr fazer o manual digital? Fará as páginas todas ou ficarão páginas por fazer? As respostas a tudo isto e a muito mais surgirão no terceiro capítulo deste fascinante folhetim de verão.
(continua)
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