No dia seguinte, ao amanhecer, a estadia em Ferragudo foi dada por terminada. As contas com a senhoria estavam feitas e, assim sendo, Duchamp e Duchamp fizeram as malas para voltar à América e o guarda Antunes pôs-se a postos para fazer o caminho de regresso para a sua casa familiar. A Professora Anita e o Cunha é que ainda não tinham decidido qual seria o seu destino. Em qualquer dos casos, uma coisa era certa, o Cunha estava melhor das costas. A noite tinha-lhe feito bem.
Com efeito, na noite anterior, a Professora Anita tinha-lhe aplicado uma massagem pelo método analítico sintético. A massagem tinha como objetivo, não só aliviar as dores nas costas do Cunha, mas também, e isto talvez fosse o mais importante, expulsar as energias negativas que ele albergava dentro de si.
O Cunha quis saber mais sobre essas ditas “energias negativas” e sobre o método analítico sintético. A Professora Anita explicou-lhe que a sua esperança era que, ao expulsar as “energias negativas”, estas ao saírem arrastassem consigo a personalidade do Esteves que o Cunha tinha interiorizado em si. Era a sua forma de se redimir pelo mal que lhe tinha causado. Tinha sido ela a pô-lo nesse triste estado, queria também ser ela a salvá-lo.
O Cunha animou-se com a ideia. Será que com a massagem pelo método analítico sintético, se iria finalmente ver livre do Esteves? Valia a pena tentar, acontecesse o que acontecesse, pior das costas não havia de ficar.
A Professora Anita explicitou ao Cunha todas as etapas da massagem. O fundamental era que o Cunha expressasse tudo o que fosse sentindo durante o decorrer da massagem. No início da massagem, não necessitava de se preocupar em ter um discurso sintática e semanticamente elaborado, pois que estaria numa espécie de estado pré-transe, sendo portanto normal que só conseguisse expressar-se por monossílabos, onomatopeias e um ou outro grunhido. A correr bem, na massagem pelo método analítico sintético, o Cunha começaria por emitir sons de vogais, a seguir ditongos, depois passaria para palavras soltas e finalmente chegaria às frases.
Iniciou-se a massagem e o Cunha expressou-se imediatamente com um “ah…” de satisfação. A Professora viu que tinha começado bem e entusiasmou-se, ao que o Cunha reagiu com um prazeroso “oh…”, logo seguido de um outro “oh…” quase em forma de suspiro. Vieram posteriormente um “ih..” sofrido, um fortíssimo “uh…” e um vigoroso “eh…”
A Professora Anita intensificou o ritmo, passou à segunda fase e como o previsto, o Cunha emitiu uma sequência de ditongos: ai, ui, ai, ai, oi, oi, oi, ai…ui…oi…oi…
A massagem pelo método analítico sintético parecia ir bem encaminhada,. Estava na altura de transitar para a terceira fase, a qual estipulava que o Cunha começasse a usar palavras soltas. E assim foi, foram proferidas palavras simples como “vai”, “sim”, e “mais”. Quando o Cunha passou a usar trissílabos, como por exemplo “continua”, a Professora Anita soube que estava na altura certa de passar à fase seguinte da massagem. Nesta etapa, previa-se que o Cunha já usasse frases. As frases surgiriam de questões previamente colocadas pela Professora Anita. Era nesta fase que, ao expulsar as energias negativas, iria tentar que estas arrastassem consigo a personalidade do Esteves alojada no interior do Cunha.
A Professora Anita começou por perguntar ao Cunha “Quem é a personagem que está dentro de ti?”. Ao que o Cunha respondeu com a frase completa: “A personagem que está dentro de mim é o Esteves”. Vamos tirá-lo de ti, sim? Sim, tira-o, tira-o todo de dentro de mim, respondeu o Cunha. Já está a sair? Questionou a Professora Anita. Sim, estou a senti-lo a ir-se, está quase, está quase, respondeu o Cunha. A Professora Anita aumentou a intensidade da massagem e perguntou, é agora, está-se a ir? O Cunha respondeu “sim, sim, está-se a ir”, nisto, respirou profundamente, teve uma espécie de espasmo e concluiu novamente com uma frase completa: “ O Esteves saiu de dentro de mim”.
A Professora Anita estava satisfeita, o Cunha estava cansado, mas exultante. A massagem pelo método analítico sintético tinha sido um sucesso, ambos tinham atingido o objetivo. A Professora Anita tinha-se redimido do mal que tinha causado, e o Cunha tinha-se livrado de Esteves. Foi uma massagem com um final feliz.
Voltamos então à manhã seguinte. Feitas as despedidas, os agentes da CIA e o guarda Antunes foram às suas respetivas vidas. O Cunha e a Professora Anita entreolharam-se. Sentes-te bem? Perguntou a Professora Anita. Sim, respondeu o Cunha. Se por acaso a massagem pelo método analítico sintético não tivesse resultado, teríamos de experimentar a massagem pelo método das 28 palavras, também é bom. Esse método baseia-se mais na oralidade? Questionou o Cunha. Sim, mas não só, assentiu a Professora Anita acrescentando, um dias destes mostro-te. Aguardo, respondeu o Cunha.
Tinham agora que decidir qual seria o seu destino. A Professora Anita tomou as rédeas da situação. Primeiro que tudo, vais fazer umas análises e uns exames médicos para ver se está tudo bem e não tens nenhuma sequela. Depois, vamos falar com uma psiquiatra minha conhecida para que te receite uma terapia. Com certeza que toda esta situação te há de ter deixado alguma marca e nós não queremos que mais tarde venhas a ter problemas psico-emocionais.
O Cunha sentiu um leve estremecimento na alma ao ouvir aquele “nós” e também o “mais tarde”, mas a bem dizer, assim como assim, já estava por tudo. Nos dias seguintes, marcou e realizou todas as análises e exames requeridos. Como era de prever, estava fino.
A Professora Anita ficou muito contente com os excelentes resultados das análises e dos exames. Caso não ocupasse já o primeiro lugar, o Cunha teria subido até ao topo do seu ranking. Assim, limitou-se a manter a mesma posição. A verdade é que mesmo que os resultados das análises e dos exames fossem negativos, ainda assim, o Cunha continuaria sempre em primeiro lugar no ranking da Professora Anita. É o eterno problema dos rankings, não se percebe lá muito bem para que é que servem!
Restava agora ao Cunha ir à consulta de psicologia . A psicóloga conhecida da Professora Anita respondia pelo nome de Dra. Carina-Marina Hoffenheim. Era de origem austríaca por parte do pai e de Xabregas por parte da mãe.
A Professora Anita acompanhou o Cunha na ida à consulta, a doutora psicóloga não se importava que ela assistisse a tudo. A doutora psicóloga começou por lhe perguntar se conhecia a Áustria. O Cunha conhecia Viena. E Salzburgo não? Salzburgo não, respondeu o Cunha, mas já tinha ouvido dizer que valia a pena lá ir. A Dra. Carina-Marina Hoffenheim acenou afirmativamente com a cabeça. E Xabregas conhecia? O Cunha disse que sim, que conhecia Xabregas, o Beato e Marvila, tinha uns primos que moravam para essas redondezas. E então, gostava mais de Xabregas ou de Viena, questionou a doutora. O Cunha percebeu que aquelas perguntas eram um teste e resolveu responder diplomaticamente. Gostava muito de Xabregas porque ficava mais à mão de semear para alguma precisão, mas também gostava muito de Viena porque em lado nenhum se comia um goulash tão saboroso e bem preparado. A doutora psicóloga pareceu ter ficado contente com a resposta.
Após mais alguns minutos de conversa, a Dra. Carina-Marina Hoffenheim prescreveu o tratamento. Uma sessão de terapia de casal em grupo. Terapia de casal? Mas qual casal? Perguntou o Cunha. Nesse instante, a Professora Anita olhou com cara de poucos amigos para o Cunha. O senhor e a Professora Anita, quem mais haveria de ser, respondeu a doutora psicóloga com um ar interrogativo. O Cunha pensou em argumentar, mas depois desistiu. A coisa também não era grave, era apenas uma sessão e o assunto ficava despachado, se fosse a pôr-se com considerações, ainda lhe prescreviam um tratamento prolongado ou o mandavam internar, o melhor mesmo era calar-se. O Cunha lembrou-se de uma sábia frase de um outro austríaco, o filósofo Ludwig Wittgenstein, que no seu livro de 1921, o Tractatus Logico-Philosophicus, escreveu assim: “Acerca daquilo que não se pode falar, mais vale permanecer-se em silêncio”.
Ainda assim, quase a medo, colocou uma questão: o que significa terapia em grupo? Pois conjuntamente com outros casais, esclareceu a Dra. Carina-Marina Hoffenheim, dando a consulta por terminada. Que pagasse à saída e se quisesse recibo, que informasse previamente a empregada, Auf Wiedersehen, Herr Cunha.
Já saídos do consultório, no interior do automóvel, a Professora Anita dirigiu-se ao Cunha e disse: simpática a Dra. Carina-Marina Hoffenheim, não é? O Cunha fez “hum hum”. Os seus pensamentos estavam longe dali. Neste momento, gostava que que fosses um personagem de banda desenhada e tivesses por cima de ti um balão em que eu conseguisse ler os teus pensamentos, disse a Professora Anita. Hum, hum voltou a responder o Cunha. Na rádio passava um êxito musical dos anos 80, “99 Luftballons”, Hast du etwas Zeit für mich? Dann singe ich ein Lied für dich:
https://www.youtube.com/watch?v=XHTMZX898mo
E agora? Em que estaria o Cunha a pensar? Seria na terapia de casal? Estaria a recordar-se da massagem pelo método analítico sintético? Ou estaria a pensar em Wittgenstein? E a Professora Anita? Será que já tinha lido o Tractatus Logico-Philosophicus? Ou não seria dada a filosofias? As respostas a tudo isto e a muito mais surgirão no décimo capítulo deste fascinante folhetim de verão.
(continua)
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