Neste entretanto, o que seria feito do Cunha, do Esteves e da Celinha? Estes dois últimos entenderam-se. O Esteves demonstrava agora uma presença de espírito que nunca na vida tinha tido, algo que muito lhe agradava a ele mesmo, mas agradava sobretudo à Celinha, que passava a vida a rir-se das suas tiradas.
O Esteves aproveitou o facto da Professora Anita estar ausente, falou com o concierge do estabelecimento termal e pediu-lhe para se mudar do quarto da cave, para o quarto da Professora Anita. O pedido foi-lhe concedido. A Celinha também aproveitou a embalagem e mudou-se para o mesmo quarto. Estavam contentes da vida um com o outro e já falam em voltar a viver juntos. Por esse lado, tudo corria no melhor dos mundos.
Já com o Cunha a situação era a inversa. Só lhe saíam platitudes da boca e para além disso, tinha desenvolvido uma obsessão romântica pela Professora Anita. O Cunha estava perfeitamente consciente que tinha interiorizado a personalidade do Esteves e que não estava em si, contudo, era como se agisse movido por um impulso ao qual não conseguia resistir. Maldita Professora Anita, que o tinha envenenado com a sua mistela, pensou o Cunha.
Movido por esse irresistível impulso, foi ter com o chefe do posto onde prestava serviço o guarda Antunes e disse-lhe que tinham de ir ao Algarve resgatar a Professora Anita das mãos dos agentes da CIA. O Cunha já se tinha informado com os controladores aéreos do aeródromo local, que a aeronave ao invés de ir para a América, tinha ido para o Algarve. O chefe de posto convocou imediatamente o guarda Antunes e ordenou-lhe que tomasse conta desta missão, e que no regresso não se esquecesse de fazer o relatório e de o lhe entregar.
O guarda Antunes não gostou da brincadeira, ainda há uns dias tinha interrompido as férias em Ferragudo para regressar à terra e agora tinha de ir novamente para sul. Desta vez nem podia levar a mulher, pois ia em serviço. Mais valia que a tivesse deixado em Ferragudo e se tivesse amanhado com a do 3° Drt°. Ainda por cima, tinha de fazer um relatório, logo ele que detesta relatórios. Mas pronto, o seu sentido de dever voltou a falar mais alto e no dia seguinte estava a caminho do Algarve na companhia do Cunha.
Foram para Ferragudo. Ocorreu ao Antunes que já tinha pago o apartamento até ao final do mês e que, por consequência, a senhoria que se arranjasse, mas tinha de o alojar. A ele e ao Cunha.
Ao chegarem a Ferragudo, a senhoria desculpou-se muito, mas tinha arrendado o apartamento a uns estrangeiros que vinham acompanhados por uma senhora. O Antunes disse-lhe então com muita assertividade, que se assim era, que lhe restituísse o seu dinheiro.
Isso é que era pior, disse a senhoria. Ia ver o que se podia arranjar. Foi falar com os estrangeiros a quem tinha arrendado o apartamento e prometeu fazer-lhes uma atenção na renda, caso aceitassem partilhar o apartamento com outros dois senhores. Os estrangeiros não levantaram objecções. Até lhes convinha, pois o custo de vida no Algarve estava pela hora da morte. O Cunha e o Antunes também concordaram com o arranjinho e a coisa fez-se.
Ao entrarem no apartamento de Ferragudo, o Cunha e o guarda Antunes quase caíram de susto. Então não era que os dois estrangeiros e a senhora, eram nem mais nem menos do que os dois agentes da CIA e a Professora Anita! Ele há coincidências inacreditáveis. Ó se as há! Parecem mesmo saídas de uma historieta de faca e alguidar!
Refeitos da surpresa, organizaram a distribuição das acomodações: o leito conjugal para os dois agentes da CIA, o sofá para o Cunha e o beliche para a Professora Anita e para o Antunes, um ficava por cima e o outro por baixo. Combinaram igualmente as horas em cada um usaria as instalações sanitárias.
Estando os assuntos práticos resolvidos, o Antunes quis passar imediatamente à ação e submeter a Professora Anita a um interrogatório. O Antunes nunca tinha feito um interrogatório, mas sabia, por ter lido num romance policial, que era preciso uma sala semi-obscura, uma secretária e uma luz intensa apontada diretamente ao rosto do interrogado, neste caso, da interrogada.
A sala semi-obscura foi fácil de conseguir, fecharam-se os cortinados, baixaram-se as persianas e já está. Um dos agentes da CIA sugeriu que a janela ficasse aberta para entrar o ar, que estava muito abafado. O Antunes negou-se. Também sabia pelo mesmo romance policial, que num bom interrogatório, todos os intervenientes tinham grossas gotas de suor a escorrer-lhe pela testa abaixo. O abafo era ideal para se conseguir esse efeito. A secretária também era fácil de arranjar, usava-se a mesa da cozinha. O pior era a luz intensa. Só havia dois abat-jours de mesa de cabeceira, ainda por cima desemparelhados. Nenhum deles produzia o efeito cénico pretendido. Ainda assim, à falta de melhor, um dos abat-jours teria de servir. Escolheram o que tinha uns penduricalhos em forma de coração.
Montado o cenário, o guarda Antunes disparou a primeira questão. Segundo sabia, a Professora Anita tinha posto um pó nos cafés do Cunha e do Esteves, contudo, segundo testemunhos de antigos alunos e encarregados de educação, o que usava na sala de aula era uma mistela que se assemelhava a mousse de manga. A Professora Anita esclareceu que a mistela, uma vez seca, endurecia e ficava como se fosse gesso, portanto, era só raspar um bocadinho com uma faca e tinha exatamente a mesma substância, só que em pó. Ficou registado, a substância ora era em pó, ora era uma mistela que se assemelhava a mousse de manga.
O guarda Antunes perguntou-lhe depois há quantos anos usava o produto. A Professora Anita respondeu que o começara a usar quando estava no início do 3° escalão da carreira docente. O Antunes insistiu numa resposta mais precisa, mas afinal há quantos anos foi isso? Ora bem, começou por responder a Professora Anita, a carreira docente esteve congelada uns anos, não sei quantos meses e mais uns dias…ora bem, terá sido há…vamos lá ver…bom…na verdade…na verdade, não sabia dizer com exatidão, acabou por confessar.
A Professora Anita pensou dizer ao guarda Antunes para perguntar aos serviços administrativos do seu agrupamento, todavia, o mais certo era que também não soubessem e ela queria colaborar com a justiça e ser rigorosa nas suas respostas. Acabou por responder que o melhor era irem falar com o Mário Nogueira, que esse sabia de certeza absoluta. O Antunes tomou nota.
O interrogatório prosseguiu e a Professora Anita lembrou-se de fazer um movimento de pernas à moda de Sharon Stone no filme Instinto Fatal. Não pensou mal. Afinal de contas, não teria muitas outras oportunidades de cruzar e descruzar as pernas num interrogatório, era de aproveitar a ocasião. Assim sendo, cruzou e descruzou sensualmente as pernas várias vezes. Não foi bem o mesmo que a Sharon Stone, mas pronto, também não lhe saiu mal de todo.
Contudo, os agentes da CiA não repararam e o guarda Antunes não era cinéfilo, ou seja, não percebeu a referência. O Cunha sim, esse percebeu. O que só veio agravar a sua obsessão pela Professora Anita. Teve um gesto impulsivo e atirou-se a ela como um cão a um osso. Tiveram de o agarrar e trancá-lo na varanda do apartamento.
Está a ver a minha senhora a brincadeira que nos arranjou? Olhe-me só para o desvario do homem. A Professora Anita compreendia a gravidade do momento, no entanto, também se sentia lisonjeada com a fogosidade do Cunha, estava com mixed feelings.
O interrogatório continuou, mas já sem utilidade de maior. Tudo o que Antunes queria saber, estava sabido. Os agentes da CIA também não tinham mais nada a acrescentar.
Puxaram-se os cortinados, abriram-se as persianas e o abat-jour voltou à mesa de cabeceira. Vamos beber qualquer coisa para desanuviar, sugeriu o Antunes. Quer os agentes da CIA, quer a Professora Anita aceitaram de bom grado a sugestão. Foram ao estabelecimento da esquina, que durante décadas tinha sido a tasca onde os pescadores iam beber um copo pela matina para matar o bicho, mas que atualmente se modernizara e até já tinha Cocktails, DJ’s e Sunset Parties. Bagaço ou copos de três é que não tinha, para grande desgosto do guarda Antunes.
Ao fim de três ou quatro cocktails, o guarda Antunes estava pronto para deitar as amarguras da vida cá para fora. Falou da mulher que lhe dava cabo do juízo, dos filhos que eram uns estroinas, do chefe que era um traste e do mais que o apoquentava. Mas o que lhe estava verdadeiramente a moer a cabeça nesse momento, era ter que fazer o relatório desta investigação.
A Professora Anita solidarizou-se com o Antunes. Ó guarda Antunes, eu também tenho de fazer um relatório. Todos os finais de ano letivo, lá tenho a estucha do relatório para entregar. Ai os professores também fazem relatórios, perguntou o Antunes. Fazem sim senhor, todos os anos, respondeu a Professora Anita. Mas eu já nem estou para me chatear, continuou a Professora Anita, mudo-lhe as datas, copio tudo do relatório do ano anterior anterior e está feito. A bem dizer ninguém lê aquilo.
Ao Antunes ocorreu-lhe uma ideia, será que os colegas da CIA porventura não teriam um relatório que ele pudesse copiar? Mudava-lhe os nomes, as datas, os locais e pronto, assunto resolvido. Já agora como é que se chamavam os colegas norte-americanos, que com esta azáfama toda, nem se tinham apresentado convenientemente, Duchamp e Duchamp respondeu um deles.
Está muito bem, comentou o guarda Antunes, os vossos nomes remetem para o artista conceptual Marcel Duchamp e para as personagens de BD Dupond e Dupond. Muito bem apanhado, sim senhor. Os agentes do CIA olharam um para o outro e encolheram os ombros, não perceberam o comentário do Antunes e decidiram atribuí-lo aos efeitos causados pela ingestão de um quinto cocktail.
O único relatório que os Duchamp e Duchamp tinham disponível, era do estranho caso de um urinol que se tinha transformado em obra de arte, num ready-made. Andavam há muito a investigar como é que essa transformação se tinha dado. Quando ouviram falar na mistela da Professora Anita e que esta transformava a personalidade de uma pessoa numa outra, pensaram que talvez houvesse alguma relação com a transformação do urinol em obra de arte e decidiram acompanhar o caso. Mas agora já tinham concluído que a Professora Anita nada tinha que ver com o urinol.
Em boa verdade, já tinham sucedido muitas mais situações desse género pelo mundo afora, ou seja, objetos vulgares que de um momento para o outro apareciam num museu ou numa galeria transformados em obras de arte: latas de sopa, caixas de detergente, caixotes de papelão, baldes do lixo, fios de eletricidade, enfim, o que se quisesse. Tinham urgência em resolver todos estes casos, pois a continuarmos por este caminho, não tardaria nada, qualquer coisa, fosse lá o que fosse, era um ready-made, ou seja, uma obra de arte.
Ao guarda Antunes não lhe agradou o relatório dos Duchamp e Duchamp, estava em estrangeiro e a ele agradava-lhe mais a escrita nacional. A Professora Anita disse-lhe que não se preocupasse, que copiasse de um dos relatórios dela. O Antunes torceu o nariz e disse que uma coisa era a escola, outra coisa era a GNR. Partindo destas duas sólidas premissas, concluiu com uma lógica inabalável, que a escola e a GNR não eram a mesma coisa, ou seja, que eram coisas diferentes.
A Professora Anita é que não era mulher para se deixar amedrontar por raciocínios lógicos e contrapôs que estava tudo muito certo, mas que um relatório é um relatório e disso não passa. Vistas as coisas nessa perspectiva, tenho de lhe dar razão, concluiu o guarda Antunes, que nunca tinha pensado nisso, mas que sim, que vistas as coisas desse modo, não havia discussão: um relatório é um relatório. No fundo, um relatório era uma espécie de ready-made. Estava então decidido, copiava o relatório do Professora Anita e pronto, caso encerrado, missão cumprida.
Ao regressarem ao apartamento, constataram que nunca mais ninguém se tinha lembrado do Cunha, que ficou fechado na varanda durante horas. Estava deitado no chão a dormir. Despertaram-no e o Cunha levantou-se meio estremunhado. Queixou-se das costas, que o chão da varanda era duro. Ainda por cima, tinha-lhe calhado dormir no sofá. Vendo como o Cunha estava combalido, os restantes concordaram em aliviar as dores do Cunha e procederam a uma redistribuição das acomodações: o Duchamp e o Duchamp ficariam no beliche, o Antunes no sofá e a Professora Anita e o Cunha no leito conjugal.
Todos recolheram aos seus aposentos. Já instalados no leito conjugal, a Professora Anita perguntou ao Cunha se queria que lhe fizesse uma massagem às costas. O Cunha respondeu que talvez daqui a pouco aceitasse a massagem, por agora, só lhe apetecia descansar a cabeça, será que o poderia fazer no ombro da Professora Anita, perguntou. Pela janela do quarto penetrava a música que vinha do estabelecimento da esquina, no caso, Paul Anka com o tema “Put your head on my shoulder”:
https://www.youtube.com/watch?v=UgZ8WTOOUe8
E agora? Aceitaria a Professora Anita que o Cunha descansasse a cabeça no seu ombro? E o Cunha, aceitaria a massagem? Saberia a Professora Anita dar boas massagens? E que tipo de massagem seria? Relaxante ou de outro tipo? Ficaria a massagem pelas costas ou estender-se-ia a outras partes do corpo? E a que partes? As respostas a tudo isto e a muito mais surgirão no nono capítulo deste fascinante folhetim de verão.
(continua)
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