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Viva la Vida! Viva la Burocracia!

 



Como todos sabemos, a classe docente queixa-se imensamente da burocracia.  


"Em nenhuma parte tanto como em Portugal se gasta tanto papel, ou se gasta tanto em papéis." (Padre António Vieira)


Todavia, nós, ou seja, quem vos escreve, sabe de ciência certa, que, por mais relatórios que sejam eliminados, e por mais documentos que sejam abolidos, ainda assim, os lamentos acerca da quantidade de burocracia em nada diminuem. 


Posto isto, é de considerar a hipótese, que talvez a burocracia, não esteja apenas relacionada com papéis, planos, relatórios e documentos a preencher, mas também com o que o poeta Alexandre O’ Neill designava como “o modo funcionário de viver”.

Vamos lá considerar essa hipótese. Para tal, regressemos ao século XX. Recordemos esse distante século, em que ainda havia alguém, pois que atualmente já pouco há, que na sua meninice, adolescência ou até como jovem adulto, queria ser professor. Claro está, hoje em dia, já quase ninguém o quer, contudo, nos anos 80 e 90 do século XX, ainda havia quem. 

Nessa época, quem desejava ser docente, desejava-o porque sentia ser era essa a sua vocação. Era um destino escrito nos astros, nos signos e nos búzios. Era mais forte que quase tudo. Inclusivamente, não faltava quem sendo do Algarve fosse colocado em Trás-os-Montes, quem sendo de Lisboa fosse para o Porto e quem sendo de Sacavém exercesse funções em Odivelas. Havia de tudo. 

Nessa época era assim, pegava-se numa mochila e ia-se à vida. Não era confortável, não era simpático, não estamos aqui a defender esses tempos, mas fosse como fosse, o certo é que para quem queria ser professor tudo isso era mais confortável e simpático do que a alternativa: ficar perto de casa a ganhar a vida, a fazer algo para o qual não se estava minimamente vocacionado. Em síntese, para o bem ou para o mal, ia-se à aventura, o mesmo é dizer, perseguia-se o seu destino, a sua vocação, o karma que se anunciara nos orixás.

No século XXI, uma parte significativa da classe docente, não a totalidade, claro está, já não foi sujeita a este tipo aventuras e por um lado ainda bem. Porém, com a perda genérica, que não total, desse espírito aventureiro e nómada, adveio simultaneamente um aburguesamento e um muito natural e justificável “deixar-se estar”.

Tudo muito justo e razoável, nada a opor. No entanto, esse natural aburguesamento, trouxe consigo uma “burocracia”. Não falamos da  habitual burocracia feita de papéis, planos e relatórios, mas sim dessa outra “burocracia”, aquela que é feita de dias quase sempre iguais. Dias com um modo funcionário de viver em que se trabalha não para se responder a uma vocação, mas apenas para se cumprir uma função: dar a matéria, acabar o manual, cumprir o programa, preparar para o exame final… em resumo, dias “burocráticos”, a antítese da aventura.

Não admira pois que os atuais jovens não queiram ser professores. Quem é que quer ser um “burocrata”? Quem quer passar o resto da vida a acordar para um dia que não vem da promessa puríssima da madrugada, mas da miséria de uma noite gerada por um dia igual? Ninguém. Quase ninguém. 

O que desejamos, não é que a classe docente volte a ter aventuras nómadas (que há ainda quem, voluntária ou involuntariamente, nunca as tenha deixado de ter), desejamos antes que essas aventuras se instalem nas salas de aulas, ou seja, que se improvise, se dance e se cante as matérias, os programas, os planos, os manuais e as preparações para os exames.  Que se pegue em todas essas “burocracias” e se faça música.

Música como aquela que Chico Buarque e Nara Leão improvisaram nos bastidores de uma gravação televisiva. Improvisação essa, que por felicidade, foi acidentalmente filmada.  É certo que havia uma pauta e uma letra, enfim, um plano. Em dado sentido, uma “burocracia”. No entanto, Chico e Nara pegaram nesse plano, nessa letra, nessa pauta, ou seja, nos papéis, e mesmo não os deitando janela fora, seguiram a sua voz, a sua vocação e cantaram um para o outro: “danem-se os autos, os dogmas, as bulas, os anúncios, os tratados, os projetos e as sinopses, serás o meu amor…”


https://www.youtube.com/watch?v=mEgy77G9D4Y






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