Há duas
formas de nos olharmos ao espelho. A primeira é olharmos para o nosso reflexo
para vermos o quão lindos e jeitosos somos. A segunda é olharmos para o espelho e refletirmos
sobre quem somos.
No
primeiro caso, o olhar divaga à superfície, à flor da pele, foca-se na
aparência. No segundo caso, o olhar foca-se na essência e dirige-se para
lugares distantes, que se situam lá bem no fundo de cada um de nós.
Comecemos
pela segunda forma de nos olharmos ao espelho, ou seja, comecemos pelo olhar
que nos leva numa viagem pelo interior de nós mesmos, aos nossos lugares mais
recônditos. Comecemos pelo olhar que nos conduz à reflexão sobre quem somos.
Podemos
refletir sobre quem somos, olhando para o nosso reflexo na superfície
envidraçada de um espelho. Podemos fazê-lo pelas manhãs, enquanto fazemos a
barba ou enquanto retocamos a maquilhagem. Todavia, também o podemos fazer de
um modo muito mais profundo e complexo: olhando para uma obra de
arte.
Uma
obra de arte é um encontro de olhares que mutuamente se espelham, se refletem e
se aprofundam. Um encontro entre quem vê e quem é visto. Quando estamos diante
uma obra de arte, a obra olha-nos tanto quanto nós a olhamos. À semelhança do
que sucede com o nosso reflexo no vidro de um espelho, também a obra de arte
nos olha através do nosso olhar para ela. Só que, ao invés de como o vidro nos
devolve apenas a imagem exterior de nós mesmos, a obra de arte devolve-nos uma
imagem dos recantos mais profundos e insondáveis do nosso ser.
Uma
obra na qual é evidente o entrecruzamento do encontro de olhares, em que quem
vê é também quem é visto e quem simultaneamente se revê, é “Las meninas”
de Velázquez. Pode ser vista em Madrid, no Museu do Prado.
Ao nos
colocarmos diante de “Las meninas”, olhamos e percebemos que também somos
olhados. Ao centro, a Infanta Margarida olha para fora do quadro, para quem
está diante dela: nós, os observadores. O mesmo faz a aia à sua direita.
Também Velázquez, que se encontra à esquerda do quadro, por detrás
de uma grande tela e a segurar pincéis e uma paleta, dirige o seu olhar para o
que está à sua frente. Como só vemos a parte de trás da tela, levanta-se-nos
uma dúvida: será que Velázquez está a pintar “Las Meninas”? Ou
será que está a pintar quem está diante dele, já fora do quadro, ou seja, nós
que o observamos?
Se
quisermos complicar a situação, vemos que no fundo da sala há um espelho e que
nele estão refletidos dois personagens, o rei Filipe IV e a rainha, parecem
estar colocados fora do espaço da pintura, ou seja, numa posição similar à
nossa, à do observador. No entanto, mesmo estando a observar, são também eles
simultaneamente observados.
“Las
meninas” é um tratado de filosofia da arte, dá-nos a ver que a arte é esse
encontro e múltiplo entrecruzar de olhares entre quem vê e quem é visto. Por
consequência, podemos concluir que a arte nos reflete de um modo muito mais
complexo e profundo do que um mero espelho de vidro.
Nas
Aprendizagens Essenciais do Ensino Básico relativas à Educação Artística, o
primeiro domínio que nos aparece intitula-se “Apropriação e Reflexão", ou
seja, precisamente aquilo de que temos vindo a falar. Apropriar-se de uma obra
de arte, é perceber o modo como nela nos refletimos e como esta se reflete em
nós. O que através dela vemos, pensamos e sentimos sobre quem somos.
A
verdadeira obra de arte é a que dirige o nosso olhar para lugares distantes e
incógnitos, que se situam lá bem no fundo de cada um de nós. Apropriarmo-nos do
significado de uma obra de arte, é apropriarmo-nos daquilo que de profundo
temos em nós e que na arte se espelha e reflete.
O
poeta, pintor e cineasta Jean Cocteau, realizou um filme chamado “Orpheu”
(1950). Num excerto desse filme, Cocteau encena esse experiência de nos
submergirmos nesse espelho que é a arte:
O
segundo domínio da Educação Artística do Ensino Básico intitula-se
“Interpretação e Comunicação". Uma vez tendo mergulhado o nosso olhar,
pensar e sentir nas profundezas reflexivas para onde a arte nos transporta, é
tempo de reemergir e perceber por onde andámos, a isso se chama interpretar.
Mas para interpretar, é fundamental sabermos partilhar a experiência vivida, ou
seja, pôr em comum. A isso chama-se comunicar.
É tão
mais fácil interpretar algo que vivemos e sentimos, quanto maior for o nosso
desejo e vontade de o comunicar a alguém. Sempre assim foi desde o inicio da
humanidade. Foi para isso que a linguagem foi inventada, para pormos coisas em
comum e assim nos percebermos e as percebermos melhor.
Desde
tempos imemoriais que os homens se juntam à volta do fogo para contar as suas
histórias uns aos outros e desse modo conseguirem interpretar o que os rodeia,
o que vivem e sentem. No início, o trovão era simplesmente aterrador e
incompreensível, quando passou a fazer parte de uma história (de um mito) que
todas as noites era contada, o trovão transformou-se na voz de um qualquer
deus. O terror aplacou-se, a realidade passou a ser interpretável.
A
necessidade de perceber/interpretar o que sucede e o que nos sucede, está tão
intimamente ligada à necessidade de contar, que por isso se inventaram os
confessionários, os teatros, a psicanálise, os grupos de ajuda e todas as redes
sociais.
Por
todas estas razões, um dos pilares fundamentais da Educação Artística consiste
em falar, relatar, discutir e argumentar. Um aluno pode saber desenhar um
círculo perfeito, conseguir efetuar um recorte sempre a direito, traçar uma
recta que não se desvia um milímetro do seu percurso e fazer desenhos
lindíssimos, porém, se não conseguir comunicar, discutir e argumentar com os
outros o que sente e pensa de uma determinada obra de arte, ter-se-á de
concluir que a sua educação artística não vai por um bom caminho.
O
terceiro e último domínio da Educação Artística é a “Experimentação e Criação”.
Também neste caso entramos num jogo de espelhos e reflexos. Ninguém experimenta
e cria nada a partir do nada. Um dos artistas mais experimentais e criativos de
sempre, Pablo Picasso, espelhou nas suas obras, as dos seus antecessores, como
por exemplo, Velázquez.
Provavelmente,
Picasso foi o maior criador de técnicas artísticas, não deve ter havido nenhuma
que não tenha experimentado, contudo, o que verdadeiramente lhe interessava era
outra coisa. Foram estas as suas palavras: “… precisei de uma vida
inteira para aprender a desenhar como as crianças".
Para
Picasso, as técnicas existiam, no entanto, não eram o mais importante, eram
apenas um meio para se chegar a um fim, que é o de saber desenhar como uma
criança.
E como
é que uma criança desenha? Não se inibe ao atravessar espelhos, não se deixa
condicionar por técnicas, simplesmente olha para um lugar fundo dentro de si e
mergulha no papel. Quando alguém lhe pergunta o que é isto que desenhaste,
mesmo que sejam riscos e rabiscos, a criança sabe perfeitamente dizer o que
desenhou. Muito poucos são os adultos capazes de o fazer.
Em
síntese, a Educação Artística consiste em ajudar os alunos a mergulharem numa
obra de arte, ou seja, em apropriarem-se dela refletindo-se nela. Consiste em
os incentivar a pôr em comum essa experiência, ou seja, a comunicarem o que
sentem e pensam de uma obra. E por fim, em deixar que se expressem “como
crianças” e que as técnicas sejam um meio que os ajude a isso e não um
constrangimento que acabe por os inibir.
Se
porventura ainda se recordam, logo no início deste texto, afirmámos que
havia duas formas de nos
olharmos ao espelho. Passámos todo este tempo a falar da segunda: olharmos para
o espelho e refletirmos sobre quem somos. Usámos a arte como o nosso espelho.
É agora
o momento de vos falarmos sobre a primeira: olharmos para o nosso reflexo no
espelho para vermos o quão lindos e jeitosos somos. Temos pouco para dizer.
Temos a sensação que hoje em dia, há quem muito se preocupe com a sua aparência
e nada com a sua essência. Talvez sempre assim tenha sido. Quem sabe e o que
importa?
Para
terminar, deixamo-vos uma canção de outros tempos. Carly Simon conta-nos a
história de um senhor muito jeitoso. Era de tal modo jeitoso, que quando
entrava numa festa “all the girls dreamed that they'd be your partner”.
Mas para além de jeitoso, era também vaidoso, como repetidamente o refrão nos
diz:” You're so vain”.
Carly
Simon escreveu esta canção como uma espécie de vingança porque o senhor a terá
traído com “the wife of a close friend”.
Carly
Simon sabia que o senhor ao escutar esta canção, não se sentiria minimamente
afetado, muito pelo contrário, a sua vaidade até aumentaria: “You're so
vain, I bet you think this song is about you, is about you…about you…
As canções, tal como os filmes, os livros e a arte são sempre acerca de nós.
Sempre.
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