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Ai, ai ai, ai ai…

 


Ler muito alto faz parte das aprendizagens essenciais? Sim.

E ler à pressa? E muito devagar? E a murmurar? Também.


O que é escrever em bom português? Depende. E o que é saber ler bem? Também depende. Mas se em ambos os casos depende, como ensinar alguém a escrever e a ler bem? Não sabemos, mas ainda assim, podemos polemizar sobre ambos os assuntos.


Comecemos pelo escrever. O escritor Júlio Dantas (1876-1962)  é um autor consagrado. Deu o seu nome a umas quantas escolas e a outras tantas ruas e avenidas de cidades e vilas deste país. A sua escrita é arrumada, aprumada e bem pontuada. 

Se atualmente frequentasse o ensino básico, certamente que arrancaria cincos atrás de cincos à disciplina de Português. Todavia, o grande Almada Negreiros, que dizia de si mesmo ser poeta, futurista e tudo, abominava-o. Citemos este último a propósito do primeiro: “O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, (…) saberá tudo menos escrever, que é a única coisa que ele faz! O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem, sabem escrever”.


Almada Negreiros acreditava que a escrita transparente, limpa e correta de Júlio Dantas era uma coisa profundamente execrável. Tanto assim era, que para o explicitar ao maior número possível de gente, Almada dedicou-se a escrever e a divulgar de um modo feroz, um texto intitulado “O Manifesto Anti-Dantas”. 


Há quem acredite que um texto com princípio, meio e fim, escrito de um modo claro, acessível, fácil e compreensível, é um bom texto. Almada Negreiros não acreditava em nada disso. Os seus textos eram densos, complexos e difíceis. Almada disse uma vez acerca dos seus escritos: “Todos os meus livros devem ser lidos pelo menos duas vezes para os muito inteligentes e daqui para baixo é sempre a dobrar”.


Ainda que muitos outros exemplos houvesse, apenas por este único que aqui vos apresentámos, é fácil de concluir que, ensinar alguém sobre o que é escrever bem, é tudo menos um assunto consensual. Mas se saber o que é escrever bem não é um tema consensual, também não o será saber, e por conseguinte ensinar, o que é ler bem.


O que será afinal ler bem? 


Nas escolas do 1° ciclo começa-se a aprender a ler com os ditongos. Comecemos nós também pelos ditongos, muito em concreto pelo “ai”. Normalmente, os meninos (e as meninas) aprendem a ler o inocente ditongo “ai” acompanhado com uma ilustração de um menino (ou de uma menina) que se magoou no dedo e solta um dorido “ai”.  Numa primeira leitura, parece não haver muito mais que se possa fazer com o ditongo “ai”. Mas se formos um pouco mais atrevidos, rapidamente chegamos à conclusão que até o inocente “ai” pode ser lido de muitas e diversas formas.

A verdade é que ele há muitos “ais”. Ele há “ais” murmurados, também os há sussurrados e ainda os há gritados. Há os “ais” de todos os dias e também há os de todas as noites. E se há todo tipo de “ais”, por consequência, também há muitas formas de os ler bem. Seja aos “ais”, seja a tudo o resto. 


Nas ações, que constam no documento das Aprendizagens Essenciais a desenvolver pela disciplina de Português, estão textualmente elencadas muitas formas de ler, como por exemplo: muito devagar, muito depressa, muito alto, murmurando, em coro e silenciosamente. 


Basta puxarmos um poucochinho pela imaginação e logo nos surgem imagens de “ais” pronunciados muito depressa! Ou muito devagar! Ou a murmurar! Ou em coro! Ou silenciosamente!  Cada um desses “ais” tem uma leitura diferente. Vejamos como Mário Viegas exemplifica todas essas leituras e muito mais a partir do só aparentemente inocente ditongo “ai”:





Se um dos primeiros passos dos meninos (e das meninas) no seu caminho para aprenderem a ler passa pelos ditongos, um dos passos seguintes passa pelas sílabas. Dir-se-ia que uma boa leitura devia respeitar as sílabas. Feitas as contas, desde tenra idade que os alunos aprendem a fazer a divisão silábica das palavras. Mas que dizer da leitura de Mário Viegas de um texto de Mário Henriques Leria, “Carreirismo”? 

Nessa leitura, o “diseur” desrespeita propositadamente quase todas as divisões silábicas. Será isto ler bem? Julguem por vós mesmos:





Ainda a propósito da leitura, levantemos uma outra questão: será que ler alto, quase a gritar, como se estivéssemos num comício, é ler bem? 

Voltemos a Almada Negreiros. Em 1978, o já referido ator e “diseur” Mário Viegas declamou “O Manifesto anti-Dantas”. A gravação é fácil de encontrar no YouTube para quem estiver interessado. 

Desde o primeiro momento que o tom é exacerbado, contudo, esse tom é simultaneamente temperado com uma grande dose de ironia. Há farpas atrás de farpas dirigidas ao estilo literário do Dantas, no entanto, há também uma certa elegância e graça no dizer.

Claro que parte do estilo declamatório da leitura decorre do próprio texto, mas dito isso, o “diseur” também soube adotar o tom apropriado para lançar as farpas e manter acesa uma polémica. 


Saber polemizar é uma competência da oralidade, é uma aprendizagem essencial. Não apenas saber polemizar, mas também saber fazê-lo no tom certo. Polemizar é uma competência que deveria ser cultivada nas escolas com carácter de urgência. 


Quão importante isso seria para a higiene mental nacional. Nos dias que correm, andamos pelas ruas, assistimos a um debate televisivo ou lemos as redes sociais e o que vemos? Vemos gente que a propósito de tudo e de nada, levanta imediatamente a voz, adoptando um tom desagradável e inapropriado. Gente cuja retórica se esgota no recurso ao aumento de decibéis, ao insulto fácil e a grosserias inconsequentes. Uma tristeza.


Para que o futuro possa ser melhor, talvez não fosse despropositado que todos lessem frequentemente alto e bom som Almada Negreiros ou outros célebres polemistas e assim aprendessem o tom certo para polemizar, ou seja, aguerrido e convicto claro está, mas também irónico e com uma certa elegância na escolha das palavras usadas.


Abaixo deixamos-vos o nosso contributo pedagógico para que as polémicas não se esgotem em insultos fáceis e grosserias. É certo que numa boa polémica vem a propósito elevar a voz até ao tom apropriado, mas convém também elevar o nível. Desse modo, ficam aqui alguns exemplos de frases de fino recorte literário, que quando ditas no tom e momento certo, não deixarão de causar o seu efeito. É começar desde já a treinar a sua leitura:


- Eu insultava-te mas acho que não irias notar.

- E… a tua opinião deslocada, estúpida e a despropósito, seria?

- Olha que o facto de ninguém te entender não é por seres um artista modernista.

- Não sei qual é o teu problema mas com certeza a psiquiatria tem um nome para ele.

- Sabes bem que entendo esse sentimento de vazio de que falas, conheço bem o teu cérebro!

- Irra! Parece impossível como em tempos foste o mais rápido dos espermatozóides!








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