“O fado é que educa, e o vinho é que instrói”, é um dito popular que tem uma certa graça. O que já não tem assim tanta graça, é quando se diz que “Em casa é que se educa e na escola é que se instrui”. Quem assim o diz, só o pode dizer por desconhecimento do que daí resultaria, pois caso soubesse, certamente que não o diria.
Comecemos por falar da palavra educação.
Por vezes, a palavra educação é usada como sendo um sinónimo de boas maneiras. Diz-se de alguém que nunca dá os bons dias e as boas tardes a ninguém ou que não sabe usar os talheres à mesa da refeição, que é alguém sem educação nenhuma. Mas, em boa verdade, o que se está mesmo a dizer desse alguém, é que não tem maneiras nenhumas.
A educação de que aqui vos queremos falar, vai para além das boas maneiras. Incluiu-as, mas consiste em algo de muito mais vasto, do que tão-somente saudar os outros com bom dia ou boa tarde, ou em saber usar corretamente os talheres.
A palavra
educação vem do latim educare, o que literalmente significa
“conduzir para fora” ou “direcionar para fora”. O termo latino educare,
compõe-se pelo prefixo ex, que significa “fora”, e por ducere,
que quer dizer “conduzir” ou “levar”.
O termo educare significava despertar e preparar para o que há lá fora: o mundo e a sociedade. Em latim, educare era ensinar a viver com o que nos rodeia e existe para lá de cada um de nós.
Neste contexto, educare era o processo pelo qual se aprendia, que não se era apenas um indivíduo limitado a si mesmo, e se descobria um extenso horizonte com muitas outras coisas: plantas, animais, estrelas, montanhas, rios, livros, poemas, sons, números, deuses, leis, costumes, gentes e o muito mais que havia e há para conhecer.
Falemos agora da palavra instruir.
A origem da palavra
portuguesa instruir, é o termo latino instruere, que significava "equipar" ou "fornecer informação". O termo latino era formada pelo prefixo in e struere ,
cujo significado era reunir, amontoar, armazenar ou empilhar.
Até 1936 não houve um Ministério da Educação em Portugal, o que havia era o Ministério da Instrução Pública, o qual estava dividido em diversas repartições, como por exemplo, a Instrução Primária, a Instrução Secundária, a Instrução Industrial e Comercial e a Instrução Agrícola.
O facto de à data, o ministério com a tutela do ensino, ser designado por Ministério da Instrução e não da educação, não é apenas uma questão de semântica. Com efeito, a escola dessa época tinha como um dos seus principais objetivos instruir, ou seja, equipar os alunos com “instrumentos” para que mais tarde na vida pudessem exercer uma arte ou ofício. No mínimo, eram equipados com alguns “instrumentos” básicos e úteis para o dia a dia, muito concretamente, saber ler e escrever, saber a tabuada de cor, fazer contas e resolver problemas e saber qual foi o primeiro Rei de Portugal.
Mesmo após ter
passado a designar-se como Ministério da Educação, o principal objetivo do
ensino continuou a ser instruir. Na década de 50, um dos argumentos mais
populares para se ir à escola, era o de que esta equipava (instruía) as pessoas com
os instrumentos necessários para não se “deixarem enganar” e não “passarem
vergonhas”.
Situação que
podemos constatar através do recurso à Cinemateca Digital. Aí podemos visionar
uma séries de curtas metragens realizadas na década do 50 do século
XX, com o então muito célebre ator Vasco Santana, a fazer de “Zé Analfabeto”.
Estes filmes estavam inseridos na chamada Campanha Nacional de Educação de
Adultos, cujo objetivo declarado era mostrar, aos que nisso não acreditavam, que
o que se aprendia na escola era muito útil para a vida. O Zé só se deixou
convencer a voltar à escola, porque estava farto de levar a vida a ser enganado
e a “passar vergonhas” por ser analfabeto, por isso se foi instruir.
Abaixo deixamos-vos o pequeno filme com a história do dia em que o Zé vai fazer o exame. É absolutamente esclarecedor:
http://www.cinemateca.pt/Cinemateca-Digital/Ficha.aspx?obraid=6515&type=Video
Para além da instrução primária e secundária, havia a universidade.
No imaginário popular da
época, o estudante universitário era um ser à parte, uma espécie de parasita
social. Era visto como alguém a quem se concedia o incompreensível privilégio
de durante uns quantos anos nada fazer de útil. Ter a instrução primária tinha
a sua utilidade. Na escola industrial, comercial ou agrícola aprendia-se um
ofício, todavia, os estudos superiores não eram uma ocupação lá muito bem
vista, pois não se percebia para que serviriam.
Claro que um médico ou um engenheiro davam sempre jeito, mas tirando isso, relativamente aos estudos de outras áreas, não se compreendia qual seria a sua utilidade. Era precisamente por isso, que se dizia nesse tempo (e noutros subsequentes), que um burro carregado de livros era um doutor.
Um muito
conhecido fado de meados do século XX, expressa perfeitamente esse sentir do
quão inúteis eram os estudantes. Algumas passagens do “Fado do Estudante”,
dão-nos bem conta de como eram retratados aqueles que enveredavam por continuar
os estudos: uns vadios, que viviam sem se ralar e cuja vida era só malandrar,
ir dançar nos arraiais, namorar, beber, folgar e cantar o fado. Deixamos-vos o
Fado do Estudante, à guitarra o amigo polidor e no canto o inexcedível Vasco
Santana:
Em síntese, a conclusão a tirar é que nesse Portugal passado, a ideia reinante era a de que se a escola lecionasse algo que fosse útil para a vida do dia a dia, ou seja, se a escola instruísse, tudo muito bem, caso contrário, para nada servia.
Regressemos agora ao nosso mote inicial: “Em casa é que se educa e na escola é que se instrui”.
Há quem se lamente dos tempos que correm e afirme que as famílias de
antigamente, ao contrário das de agora, cumpriam o seu papel educando os seus
rebentos, libertando assim a escola dessa tarefa para esta se concentrar
naquilo, que esses mesmos acreditam ser a sua exclusiva função: instruir. Nós
não pensamos assim. A escola instrui, mas isso é pouco, muito pouco, pois a sua
mais alta função é precisamente educar.
Parece certo
dizer-se que antigamente, as famílias sabiam como inculcar nos seus rebentos
que o respeitinho é muito bonito e se recomenda, contudo, isso pouco tem a ver
com educar no sentido mais nobre da palavra, aquele que decorre do termo latino educare.
Terá a ver com dar os bons dias e as boas tardes, com saber comer de garfo e faca, com ceder o lugar sentado a quem precisa e com ter bons modos.
Mas educar não é só isso, é
muito para além disso.
Educar consiste fundamentalmente em abrir horizontes que se estendam para lá dos limites de cada indivíduo. Educar é sobretudo mostrar caminhos que nos conduzam para fora de nós mesmos e também das nossas origens sociais e familiares.
Caminhos que nos levem a compreender as plantas, os animais, as estrelas, as montanhas, os rios, os livros, os poemas, os sons, os números, os deuses, as leis, os costumes, as gentes e o muito mais que há para conhecer, mas que nos levam também a compreender, que quem cada um de nós é ou pode ser, vai muito para além dos eventuais limites das nossas origens sociais e familiares.
Por assim ser, educar consiste também em mostrar aos alunos provenientes de ambientes sociais desfavorecidos, que há um mundo de coisas para lá daquelas que a sua família ou comunidade lhe pode dar a conhecer. Educar consiste em fazer saber a esse aluno, que os limites do mundo vão muito para além dos limites do seu mundo, ou seja, dos limites do local e da família de que é proveniente.
Educar consiste em mostrar aos alunos provenientes de ambientes sociais favorecidos ou muito favorecidos, que há um mundo de gente diferente da do seu meio familiar. Educar consiste em fazer saber a esse aluno, que os estreitos limites sociais e culturais do mundo de muitos outros, fazem também parte do seu mundo. Educar consiste em se fazer compreender a um aluno proveniente de um ambiente favorecido, que mesmo que os outros vivam muito aquém do seu mundo, o seu mundo não é uma redoma isolada e afastada do mundo dos outros.
Neste contexto,
a escola pública é o local ideal para se educar, pois proporciona um espaço e
um tempo para que os limites se esbatam e cada aluno possa ir para lá de si
mesmo e do ambiente social e cultural de que é proveniente. Os mais favorecidos
misturam-se com os mais desfavorecidos, culturas diversas tocam-se e há novos
mundos que se abrem a todas as partes.
Não se trata de
nenhuma utopia, é o que naturalmente sucede em muitos países e o que durante
décadas genericamente se passou em Portugal. Contudo, há hoje quem se movimente
para que assim deixe de ser. Há quem queira que todos os meninos e meninas
vindos de boas famílias frequentem colégios privados, e assim se isolem num
mundo em que os seus colegas são alunos exclusivamente provenientes de
ambientes familiares equivalentes aos seus.
Em casa é que se
educa! Muitas das famílias desses meninos e meninas, assumem-no. Educam-nos
para terem boas maneiras e para se portarem bem na escola, pois para essas
famílias, a escola é muito importante. Querem os seus meninos e meninas numa
“escola de qualidade”, ou seja, num ambiente escolar asséptico e “clean”, em
que não há notas baixas, não há maus alunos, não há faltas de respeito, não há
“bullying” e nem há sequer quem vá mal vestido, pois é política dessas
instituições de qualidade, que todos usem um uniforme de estilo britânico que
lhes vá maravilhosamente bem.
Essas ditas
“escolas de qualidade” consistem genericamente em trabalhar para instruir os
meninos e as meninas com rigor e exigência, preparando-os desse modo para
obterem muito boas notas nos testes e exames e assim ingressarem na faculdade e
chegarem a doutores.
Em casa é que se
educa, e na casa das boas famílias não se descura sequer os aspetos
extra-curriculares da educação. Razão pela qual, os meninos e as meninas sabem
perfeitamente distinguir os talheres da sopa dos da sobremesa, praticam uma
atividade desportiva, de preferência rugby ou equitação, vão à missa ao domingo
e fazem voluntariado numa qualquer instituição social.
Em casa é que se
educa! Para os meninos e meninas de boas famílias, esta tese parece resultar
bem. Frequentam uma “escola de qualidade” e bem paga, e se se portarem bem,
ficam com o futuro garantido e de certeza absoluta que mais tarde na vida,
vão conseguir adquirir um apartamento num condomínio privado onde podem continuar
a fingir viver isolados e protegidos do mundo.
Mas e para todos os outros? Resulta bem a tese de que em casa é que se educa? Para os moços e para as moças isso funciona?
Se adotarmos a tese de que em casa é que se educa e na escola é que se instrui, e se os moços e moças em casa educação não tiverem, e na escola a não obtiverem, a conclusão óbvia é a de que ficam sem acesso à educação. Na melhor das hipóteses, passam pela escola para aprender a ler, a escrever, a contar e a fazer contas, aprendem umas coisinhas de história e geografia, a mexer em computadores e a falar em inglês. Tudo coisas muito úteis e que dão sempre jeito para o dia a dia.
Quando os moços
e as moças são mais crescidos, a escola até lhes proporciona a oportunidade de
aprenderem uma profissão (dantes dizia-se um ofício). Há inúmeros cursos para
animadores culturais, para assistentes de saúde e também para técnicos de
computadores. Coisas que fazem muita falta.
É pena é não haver cursos na escolaridade obrigatória para canalizadores e para criadas de dentro. Hoje em dia não se consegue arranjar ninguém que arranje o cano ou que limpe o pó como deve ser, e quando se arranja alguém, nem sempre é de fiar.
Deixamos-vos as
duas partes de um guião de aprendizagem cujo objetivo não é apenas instruir,
mas sobretudo educar, mostrar caminhos para o mundo e quer expandir horizontes.
Acreditamos numa escola que educa.
Guião de aprendizagem "Volta ao Mundo em 80 Cores"
https://drive.google.com/file/d/1mVD3q3fTy0PmRavG5JZ6Uoy1dUiIR5qv/view?usp=sharing
Guião de aprendizagem "Volta ao mundo em 80 cores (e a preto e branco)"
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