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Nós é mais é bolos

 


A memorização é um procedimento que a pedagogia construtivista dispensa para a elaboração e concretização das suas aulas, pois segundo esta, os alunos não devem memorizar os conteúdos, devem sim compreendê-los.

 

Nós por aqui gostávamos de ser construtivistas, é uma coisa gira, moderna e tem estilo, mas, em boa verdade, até ao presente momento, nunca antes tínhamos pensado no assunto. 

Ser um professor construtivista é coisa que nos parece ter uma certa pintarola, mais a mais, que também nós achamos que os alunos devem compreender os conteúdos, ou seja, por esse lado estamos alinhados. O nosso único problema com o construtivismo, é que às vezes parece que este tem horror à memória. 

Bom, talvez estejamos a ser injustos, ao que construtivismo tem mesmo horror não é bem à memória, mas sim à memorização mecânica. A memorização mecânica é que é a má da fita, o que é bom são as memórias significativas.

 

A mais perfeita homenagem que algum dia alguém fez à memória, foi o romance escrito por Marcel Proust entre 1908 e 1922, “Em busca do tempo perdido”. São sete longos volumes, que se estendem por três mil e duzentas páginas, nas quais aparecem cerca de duas mil personagens. É obra.

O leitor acompanha as memórias de infância do autor, a evolução para o estado adulto, a transição do século XIX para o século XX, os meandros da aristocracia francesa, assim como as reflexões acerca da natureza fugidia do tempo e da ausência de sentido do mundo. O narrador interessa-se por arte, pela sociedade e pelo amor.

 

Tudo começa com uma madalena. Conta o narrador, Marcel Proust, que numa tarde em que chegara cansado a casa, a mãe lhe perguntou se queria um chá. Respondeu que não. Mudou de ideias e aceitou. Foi-lhe servido um chá acompanhado por uma madalena.


A madalena de Proust nada tem que ver com o bolo a que os portugueses dão o mesmo nome. É uma espécie de biscoito, minuciosamente descrito pelo autor. Ao molhar a madalena no chá e a saborear, dá-se uma epifania. Proust recorda-se de muitos anos antes, a sua tia lhe ter oferecido uma madalena embebida no chá. Repentinamente, tudo lhe vem à memória: a tia, o seu cheiro, a sua cama, o seu quarto, a casa em que passava férias, a infância, o jardim, as ruas, os passeios, as lojas de uma pequena vila e tudo e todos os que conheceu, um por um. O sabor de há tanto tempo atrás, fez com que a sua memória reconstituísse toda a sua vida.

 

Há milhares e milhares de artigos, livros e teses académicas sobre a madalena de Proust. Desde há muitas décadas, que muitos tem sido os estudiosos que dedicaram a maior parte da sua vida ao estudo da madalena e do seu profundo significado. Há vários filmes dedicados ao assunto. Há cafés por toda França que se chamam a madalena de Proust. Há hotéis cujo nome é “La Madeleine de Proust”, em França há bastantes, mas também os há em sítios como Bruxelas ou Palma de Maiorca. Em Nova Iorque, todos anos, no início de dezembro, há o Proust Weekend, onde claro está, o que não falta são madalenas.



Tudo isto estava muito bem, não se tivesse dado o facto de se ter descoberto que a madalena de Proust era afinal umas torradas. Com efeito, vieram recentemente a público manuscritos e rascunhos do autor francês que demonstram, que originalmente a madalena eram umas torradas. 


https://www.publico.pt/2015/10/22/culturaipsilon/noticia/e-se-proust-se-tivesse-ficado-pela-torrada-1712049

 

É um dos maiores volte-faces da história da literatura. É como se de repente descobríssemos que o capuchinho vermelho afinal vestia exuberantemente de cor púrpura ou que ao Pinóquio lhe crescia outra coisa, que não o nariz.

 

Andaram milhares de alunos franceses durante décadas e décadas a estudar a madalena de Proust, a fazer testes e trabalhos de casa sobre o assunto, para agora, assim do nada, lhes virem dizer que afinal são torradas. Está mal, é coisa que não se faz. 

Em França há até um blog pedagógico exclusivamente dedicado a Proust e à sua madalena. Tem sugestões de múltiplas atividades para desenvolver na sala de aula, seja com alunos de 7 anos de idade, seja com estudantes universitários.  Para quem tiver curiosidade, aqui fica a ligação:

http://proustpourtous.over-blog.com/2019/11/proust-a-l-ecole-6-a-la-decouverte-de-l-univers-proustien-seance-4-la-madeleine-un-petit-gateau-pour-un-grand-succes.html

 

Uma coisas destas, é algo que nós, que aqui escrevemos, só sentimos quando nos disseram que Plutão afinal já não era um planeta. 

Andámos nós na escola primária a memorizar os planetas todos do sistema solar e vai na volta havia um a mais. E agora? Como é que é? Quem vai compensar todos aqueles alunos, que como nós, quando andavam na escola primária, tiveram uma resposta incompleta no teste à pergunta “Quais são os planetas do sistema solar?” por se terem esquecido de Plutão. Ah pois é! Quem vai reparar a injustiça que sucedeu quando professora primária nos ralhou por nos termos esquecido de Plutão. Quem é? 

 

Para se repor a justiça, era necessário que todas as professoras primárias de antigamente viessem agora fazer um pedido desculpas público e dissessem assim: “Tinhas razão meu menino, não comias muito queijo nem eras um cabeça no ar, Plutão de facto não era um planeta. Desculpa”.

Ou as professoras de antigamente vinham a público fazer a revisão da memória histórica ou cortava-se-lhes a reforma, que nem para uma meia-de-leite com torradas haviam de ter.

 

Bom, mas voltemos à madalena, perdão, às torradas. Para os franceses até é bem feito para não andarem sempre com a mania que são finos. Ao pequeno almoço ele é éclairs, duchesses, croissants, brioches, madeleines e não sei que bolos mais, mas então não podem comer umas simples torradas! São mais que os outros? É isso? Pois tomem lá, feitas as contas, a mais significativa memória de Proust não foi La Madelaine, mas sim as torradas. 

 

Não há nada como umas torradas quentinhas logo pela manhã para começar o dia. Trazem-nos à memória o tempo em que éramos crianças e nos sentíamos aconchegados. E ao lanche? Ui, em dias frios e chuvosos, que bem que sabem, é um regalo.

E não nos venham cá com modernices e construtivismos gastronómicos dizer-nos que torradas é uma comida de tias velhotas e coisas desse género. Não venham cá dizer-nos que ele agora há snacks, brunchs e cenas dessas, pois que nós também somos cosmopolitas e lemos jornais estrangeiros, consultem The New Yorker, The Trend Is Toast:

https://www.newyorker.com/culture/culture-desk/the-trend-is-toast


Em síntese, do que nós gostamos mesmo é de nos alimentar com memórias significativas, seja na escola, seja no café da esquina...


 Guião de aprendizagem "Vamos fazer uma ficha"

https://drive.google.com/file/d/1-Ffg5YI9oaH_qZP7lZ0sqI2esV_ij9my/view?usp=sharing

Ficha de exploração "Vamos fazer uma ficha"

https://drive.google.com/file/d/1FHRtK1-eRX3Axu3FyIUATDLUH4a0f9wW/view?usp=sharing



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