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O acontecimento histórico de 2022



2022 não nos deu muitos motivos para sorrir. 

Dito isto, não houve praticamente dia nenhum, em que nos noticiários televisivos não se anunciasse um acontecimento histórico. Ou foi uma vitória futebolística, ou foi um evento político, ou foi uma descoberta científica, ou foi a inflação, ou foi outra coisa qualquer. Se estiveram atentos aos noticiários, repararam com certeza que acontecimentos históricos, foi coisa que não faltou em 2022.

 

Todavia, acontecimentos históricos, daqueles que vão realmente ficar na história e não são apenas para fazer parangonas jornalísticas, em 2022, só terá havido um: a guerra entre a Ucrânia e a Rússia.

 

Em tempos amámos a Rússia e acreditámos que viria a ser livre. Imaginámos que nunca mais a iriam governar sanguinários como o camarada Estaline (1878-1953) ou o Czar Ivan o Terrível (1530-1584). 

Pelos vistos, não foi assim e temos agora Putin.


Há muito que não sabemos o que é feito dessa Rússia que então amámos. Nessa época apanhávamos um avião para São Petersburgo, a mais elegante, fria e melancólica de todas as cidades europeias. Por ali permanecíamos uns dias, sobretudo para passearmos pelas salas do Hermitage. 

Não há outro local do mundo onde possamos encontrar juntas tantas maravilhas artísticas: Rembrandt, Caravaggio, Rubens, Picasso e tantos mais. Gostávamos sobretudo da sala dedicada a Matisse, onde para além da célebre “Dança”, havia o quadro “Pequeno almoço - Harmonia em vermelho”. Talvez por causa dos seus arabescos e pelo o quão vibrantes eram as cores, esse era o nosso favorito.

 


Visita virtual ao Hermitage: 

Por vezes, apanhávamos o comboio noturno que ligava São Petersburgo a Moscovo, o Flecha Vermelha. Nessas ocasiões, era impossível não nos lembramos de Anna Karenina, que frequentemente também fazia esta viagem.

Anna Karenina é a personagem principal do livro com o mesmo nome. Foi com esta obra-prima de Leão Tolstoi, que aprendemos as venturas e desventuras do amor.

A trama gira em torno de um caso extraconjugal da personagem que dá título à obra, uma aristocrata da Rússia Czarista que, a despeito de parecer ter tudo, beleza, riqueza, popularidade e um filho amado, sente-se vazia até encontrar o impetuoso Conde Vronsky.



Chegávamos a Moscovo ao amanhecer, depois de horas a atravessar a extensas florestas. Moscovo nada tinha que ver com a melancolia, a frieza e a elegância distante de São Petersburgo. Era rude, selvagem e enérgica.

Em Moscovo visitávamos a casa de Tchekhov (1860-1904). Há muito que conhecíamos as suas peças teatrais, nas quais os personagens teimavam em vão disfarçar a desesperança que sentiam. Arrastavam-se pela vida sem outro objetivo que não fosse que a um dia se seguisse um outro, igual ao anterior. Tinham tido sonhos, tinham esperado por algo, mas agora restava-lhes apenas o quotidiano: as mesmas pessoas, os mesmos afazeres e os mesmos lugares.

 

O pessimismo existencial de Tchekhov, revelava-se nalgumas das passagens mais conhecidas dos diálogos das suas peças:

- Que sorte possuir uma grande inteligência: nunca te faltam asneiras para dizer.

- Festejou-se o aniversário de um homem muito modesto. E apenas no final do banquete é que se percebeu que alguém não tinha sido convidado: o festejado.

- Se tens medo da solidão, não te cases.

- Nada une tão fortemente como o ódio, nem o amor, nem a amizade, nem a admiração.

 

Por conhecermos Tchekhov, sabíamos o quão grande pode ser a tristeza nas vidas em que já nada há para acontecer, em que todos os sonhos se esboroaram. Sabíamos que por muitos disfarces que usássemos para esconder a desesperança, nunca a iríamos conseguir esconder de nós próprios. Por isso, sabíamos também que não queríamos ficar assim, desesperançados, como os personagens de Tchekhov.



Em Moscovo, era também o lugar onde se encontravam os ícones medievais pintados por Andrei Rublev, um monge errante, cuja esperança na vida eterna era incomensurável.

Andrei Rublev é considerado o maior pintor de ícones da Rússia. As suas imagens são veneradas como santas e a sua figura está rodeada por uma aura de misticismo e religiosidade únicas. Andrei Rublev é a encarnação da alma russa.

Em 1966, o grande cineasta Andrej Tarkovsky realizou um filme intitulado Andrei Rublev. É certamente uma das mais belas e arrojadas obras cinematográficas de sempre. Para quem souber ver, as três horas e vinte cinco minutos de duração do filme são mágicas. Fica o trailer:

 


O ano de 2022 trouxe-nos a tristeza de perceber que a Rússia real é cada vez menos a nossa Rússia, e isso é efetivamente um acontecimento histórico. Mas muito pior do que isso, 2022, trouxe à Ucrânia uma tragédia sem fim à vista. Uma tragédia efectivamente histórica.

 

No dia 27 de dezembro de 2022, na RTP 3, passou o documentário “Mariupol, Unlost Hope”. Ao longo do documentário, ouvimos relatos de várias vítimas da guerra e, simultaneamente, vemos como uma artista vai pintando um quadro com uma vista da cidade de Mariupol.

No entrelaçar dos traços, das linhas e das cores que vão surgindo na tela, vislumbramos a tremenda crueldade desta guerra, de um modo que nenhum noticiário nos tinha dado antes a ver. A arte possibilitou-nos entrever o que nunca antes tínhamos compreendido.

O documentário fala-nos de esperança, pois mostra-nos que mesmo no meio da destruição e da morte, há quem pela arte nos consiga restituir o que é ter alma.

O documentário pode ser visto na RTP 3 durante os sete dias subsequentes à sua exibição e depois na RTP Play. Ou então, também se pode ver fazendo o download em https://vimeo.com/731046618


Em 9 de agosto de 1942, São Petersburgo (então chamada Leninegrado) há muito que estava cercada pelos nazis. Muitos tinham morrido de fome e frio. Outros sobreviveram alimentando-se de gatos, cães, cavalos e de tudo o que encontravam.

Ainda assim, nesse 9 de agosto de 1942, Shostakovich fez estrear a sua Sétima Sinfonia.

A sinfonia foi executada pelos músicos sobreviventes da orquestra com auxilio de músicos da banda militar. A maioria dos músicos estava a morrer de fome, e desmaivam durante os ensaios, três deles morreram.

A orquestra foi capaz de tocar a sinfonia completa apenas uma vez antes do concerto de estreia. Apesar da má condição dos músicos e de muitos dos espectadores, o concerto foi um sucesso imenso e teve uma ovação que durou por mais de uma hora.

 

Anos mais tarde, em 1959 no auge da Guerra Fria, com mundo à beira do conflito nuclear, o popular maestro norte-americano Leonard Bernstein, viajou até à então chamada URSS numa missão de paz.

Num concerto em Moscovo, homenageou Shostakovich e interpretou a sua sétima sinfonia. No final da visita, fez um discurso acerca de como as artes constroem pontes até entre inimigos. Aqui vos deixamos um vídeo desse acontecimento histórico. Que nos sirva de inspiração para 2023:




Tentámos traduzir aos nossos alunos o verdadeiro acontecimento histórico de 2022...

Guião de aprendizagem "A Guerra entre a Rússia e a Ucrânia"


 


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