Andaríamos pelos
finais da década de 80, estávamos tranquilamente a ouvir o rádio, quando
subitamente, sem que tivesse havido qualquer aviso prévio, escutámos as
seguintes palavras vindas do aparelho: "dunas são como divãs, biombos
indiscretos de alcatrão sujo, rasgados por cactos e hortelãs."
O quê?!! Biombos indiscretos? De alcatrão sujo? Rasgados por cactos? E por hortelãs? Mas de que raio estão a falar? Ficámos perplexos e surpreendidos, mas rapidamente nos apercebemos que a revolução tinha chegado. Os jovens saíram para a rua e houve grandes manifestações de alegria, finalmente todos sabiam que se podia escrever (e bem), sem que, o que se escrevia, tivesse de fazer qualquer sentido.
O vento da
liberdade soprou por todo lado e muitos foram os que num gesto audaz, rasgaram
os fios que lhes atavam e prendiam as mãos desde a escola primária, quando as
professoras lhes diziam “a tua redação tem que ter princípio, meio, fim e um
fio condutor”. Nesse dia, nas dunas, muitos souberam que podiam rebentar com os
fios condutores, misturar fim, princípio e meio, e ainda assim continuar a
escrever redações.
Abandonados
foram também outros conselhos e recomendações como “não te esqueças da
pontuação”, “esta frase não faz sentido”, “olha lá os parágrafos” e mais isto e
mais aquilo. A partir das dunas, muitos foram os que se libertaram de todos
esses constrangimentos e começaram a escrever como muito bem lhes apetece.
A pontuação? A pontuação é uma coisa muito subjetiva. A frase não faz sentido? E depois? Há muita coisa nesta vida que não faz sentido. Parágrafos? São como o Natal, é quando um homem quiser.
Claro que houve tolos, porque sempre os há, que julgaram que o tema “Dunas” falava literalmente de dunas, dessas que há na praia junto ao mar. Ouviam a palavra dunas, que se repetia ao longo da canção, e apesar da peculiaridade da letra, não lhes ocorreu a ideia que talvez se estivesse a falar de dunas metafóricas e não propriamente das dunas de areia.
O problema dos
tolos são dois, um é que o sentido das metáforas lhes escapa e portanto tendem
a ser literais, o segundo é que não conseguem lidar com muitas palavras ao
mesmo tempo e, por consequência, concentram-se apenas numa de cada vez.
Voltaremos aos tolos mais à frente neste texto.
Nessa época,
para além dos tolos, havia também os reacionários, porque sempre os há. Os
reacionários da escrita não implicaram com as dunas, implicaram antes com um
livro e tiveram o seu grande momento hollywoodesco, quando um secretário de
estado de então vetou a candidatura de José Saramago a um prémio internacional.
Foram invocadas
razões religiosas, mas nunca a felicidade daqueles que dizem que José Saramago
não sabia escrever português porque não usava pontuação, foi tão esfuziante
como nesse momento. Podia lá ser uma coisas dessas? Não usar pontuação? Uma
pouca-vergonha era o que era. O facto de posteriormente ter sido atribuído a
Saramago o Nobel da literatura, deixou-os confusos e sem saber muito bem o que
dizer, só a pouco e pouco vão recuperando do choque.
O problema dos
reacionários são dois, um é que o sentido das inovações lhes escapa e portanto
tendem a ser tradicionais, o segundo é que não conseguem lidar com várias opiniões
diferentes e, por consequência, concentram-se apenas numa única, a sua.
Voltaremos aos reacionários mais à frente neste texto.
O que
efetivamente as dunas fizeram, foi trazer para o universo Pop a consciência de
que era possível escrever de um modo diferente do tradicional. Podia-se
escrever de uma forma em que o sentido das palavras fosse tudo menos óbvio, a
pontuação fosse uma escolha e o fio condutor nem sequer existisse.
No Brasil há muito que isso tinha sucedido. A letra da canção “Águas de Março”, que foi um tremendo êxito, era composta de inúmeras palavras, sem ordem aparente e o significado nada tinha de literal, era totalmente metafórico. Em síntese, a escrita de “Águas de Março” foi absolutamente inovadora. Os tolos e reacionários odiaram-na e os seus autores sofreram perseguições políticas. Hoje em dia, é considerada a melhor canção brasileira de sempre, oiçamos :
Em boa verdade,
a plasticidade na escrita há muito que existia em Portugal, somente não era
conhecida do grande público. Não haverá muitos poetas portugueses, talvez três
ou quatro, que tenham alcançado a grandeza de Herberto Hélder (1930-2015).
Muitos consideram-no o maior do século XX, contudo, fora dos meios literários,
até mesmo o seu nome, já para não falar da sua escrita, é praticamente
desconhecido.
A razão para assim ser só pode ser uma, ou duas, ou três, ou talvez quatro, ou seja, o modo como torce e retorce todas as regras tradicionais da escrita, inventa sentidos desconhecidos, cria a sua própria gramática e usa as mais improváveis metáforas.
Fica aqui um exemplo da sua escrita, o poema “A minha cabeça estremece”, musicado por Rodrigo Leão:
Nós gostávamos
que as palavras se libertassem, que as frases voassem e que de cada vez que
alguém escrevesse um texto, o fizesse como se fosse a primeira vez. Mais do que
isso, gostávamos que de cada vez que se escrevesse, se reinventasse a escrita e
as suas regras. É uma metáfora, como é evidente.
Ainda assim, gostávamos que nas escolas, os alunos para além de aprenderem a escrever corretamente em termos ortográficos e gramaticais, tivessem simultaneamente um tempo para aprenderem a escrever incorretamente, ou seja, para inventarem escritas e irem aprendendo que com as palavras tudo se pode ser e fazer.
Como o prometido
voltemos aos tolos e aos reacionários. São estes os que não querem que tudo se
faça e seja com as palavras. Os tolos preferem palavras óbvias e literais, se
for só uma de cada vez, tanto melhor. Os reacionários gostam pouco de muitas
palavras, sobretudo se forem diferentes das suas. Preferem que as palavras
sejam as mesmas e signifiquem somente o que sempre disseram, nem mais, nem
menos.
Passadas décadas
desde que pela primeira vez divertidamente ouvimos dunas são como divãs,
biombos indiscretos de alcatrão sujo, rasgados por cactos e hortelãs, é com
melancolia que agora ouvimos outras palavras, menos divertidas. Acende-se a
televisão, liga-se o computador, leem-se os jornais e vemos e ouvimos que
movimentos cívicos e sociais têm sucesso recorrendo a uma única palavra para se
designarem a si mesmos. Uma palavra óbvia, literal e para mais assertiva, como
se não admitisse outras palavras em seu redor.
Há organizações cívicas cujo nome é Basta, Agir, Livre, Stop e Chega. Uma só palavra, imediatamente compreensível mesmo para o mais tolo, sem a mínima sombra metafórica e em que pressentimos uma assertividade que não admite discussões nem argumentos.
É pena, nós
gostamos de filologia e sabemos que uma palavra pode significar mil coisas
diferentes, uma frase dez mil e um texto um milhão, oxalá todos o soubessem.
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