Foi no ano 2000 que a música Pop foi oficialmente consagrada nos currículos escolares britânicos. Desde os primeiros anos de escolaridade, passando pela escola secundária e mais tarde no ensino superior, a música Pop é um assunto que na Grã-Bretanha se aprende e se estuda. Há testes, exames e tudo.
O objetivo não é tanto formar músicos, mas sim conhecer a história da música Pop, estabelecendo uma articulação transversal com outras áreas curriculares, fazendo com que os alunos se relacionem com as canções, as pensem e as analisem. Isto para que percebam de que forma essas canções influenciaram e moldaram a cultura, a sociedade e o modo como vivemos.
Desde a década de 60 que existiam
projetos pioneiros nesta área em algumas escolas britânicas, contudo, os setores
mais conservadores reagiram mal a esse tipo de inovações, tendo sido
necessários quase quarenta anos para que a música Pop finalmente integrasse
formalmente os currículos escolares.
Recentemente foi lançado um livro que nos conta a história dessa aventura: “Pop Music Education in the UK 1960-2020”.
Um professor que participou nessa odisseia falou assim do livro: “Reading Pop
Music Education In the UK 1960-2020, brought back so many memories. I am struck by how risky and wild the whole business
was. We really had to make a case for popular music to be taken seriously in
education and take, in hindsight, crazy personal risks to set up these courses
and intuitions”.
Logo após o Reino Unido ter consagrado a música Pop
nos seus currículos, outros países o fizeram, a Alemanha, a Holanda, a
Austrália e as escolas mais liberais dos Estados Unidos.
Na internet há milhares de exemplos de atividades para todas as idades e há também centenas de planos educativos de escolas britânicas (e não só) para todos os níveis de ensino no âmbito da história da música Pop. Há inclusivamente manuais escolares com exercícios, TPC’s, testes de avaliação e tudo o mais. Deixamos-vos apenas um exemplo de um site de partilha desses recursos educativos:
https://resources.solfeg.io/help-article/pop-music-history
Em Portugal, houve alguns projetos pontuais nesta área, que acabaram por dar origem a teses de mestrado. Destacamos um no Agrupamento de Escolas Afonso de Paiva em Castelo Branco, que deu origem a uma tese intitulada “A utilização do género Pop/Rock em contexto sala de aula”:
http://hdl.handle.net/10400.11/7188
E um outro na Escola Básica Barbosa du Bocage em Setúbal, do qual surgiu a tese “Música pop-rock na sala de aula”
https://comum.rcaap.pt/handle/10400.26/6488
Nós por aqui não temos ambições académicas e sabemos
que a sociedade portuguesa, no que a currículos escolares diz respeito, é de
longe muito mais conservadora do que a britânica, consequentemente, estamos em
crer que a história da música Pop dificilmente entrará nas nossas salas de
aula, ainda assim, vamos propor-vos uma pequena atividade pedagógica para que
se perceba o imenso potencial da coisa.
Para tal, vamos recorrer a um dos nossos mais célebres
cançonetistas Pop: Marco Paulo. Há quem goste, há quem não goste, a nós isso
pouco nos importa, não é de gosto ou da falta dele que aqui tratamos. O que
aqui vamos tratar é do modo como Marco Paulo marcou a cultura e a sociedade
portuguesa.
Para esta proposta, vamos proceder à análise de quatro canções de Marco Paulo. Serviu-nos de inspiração o escritor e guionista Alexandre Borges, que há muito é uma referência no estudo da cultura Pop portuguesa.
Em 1978, Marco Paulo gravou o tema “Ninguém, Ninguém”. Antes de mais, vamos ouvir a canção com muita atenção:
O que à partida pareceria uma singela canção
romântica, é no fundo um manifesto intelectual. Diz-nos o refrão que “Ninguém
ninguém poderá mudar o mundo…”, sendo que, em 1978, ainda a revolução de abril
era muito recente e todos queriam mudar o mundo. Foi uma época em que mesmo as
mais estapafúrdias utopias pareciam possíveis. Nesse contexto, há que admirar a
audácia do posicionamento político-filosófico de Marco Paulo, que
assertivamente nos diz que não se ponham cá com ideias, que ninguém, ninguém
vai mudar o mundo.
Mais do que isso, num período em que o coletivismo era moda, em que sindicatos e cooperativas estavam em alta, Marco opta por afirmar a sua individualidade sem qualquer receio: “De quem fui, de quem sou, onde vou. Só eu sei mais ninguém sabe”
A partir desta canção, é possível refletir com os alunos acerca de um dos valores do PASEO, a saber, Cidadania e Participação. Ser um indivíduo único e simultaneamente um cidadão participativo, é um desafio dialético cuja canção “Ninguém, ninguém” ilustra de forma exemplar.
1980 é o ano em que sai para os escaparates o tema “Eu tenho dois amores”. Foi um sucesso imediato. Recordemos:
Marco Paulo advoga nesta canção uma ruptura com
paradigmas sociais ainda hoje vigentes na sociedade portuguesa. Revelando-se
muito à frente do seu tempo, traz para a esfera pública o tema da bigamia. Tema
que, como muito bem sabemos, é ainda hoje fracturante e urgia discutir. Marco
não nos esconde nada, nem a sua bigamia, nem a sincera dor do seu coração
dividido.
Uma é loura e a outra morena, e “embora mais pequena é
muito mais mulher”. Percebe-se nesta passagem, que o cançonetista não fala
apenas em nome próprio, assume-se como um representante de todo o género
masculino: “tal qual um homem quer”.
Marco Paulo fala-nos em nome do homem português, senão
mesmo do homem-universal. O melhor elogio que se pode fazer a Marco Paulo é
constatar que “Eu Tenho Dois Amores” aborda problemáticas que ainda hoje
permanecem perfeitamente atuais, razão pela qual, a competência do PASEO
“Relacionamento Inter-pessoal” pode perfeitamente ser trabalhada a partir deste
tema.
Em 1991, Marco Paulo gravou um outra grande êxito
“Taras e manias”:
A canção inicia-se num tom suave e ternurento, com o
verso “Quando
você vem com essa cara de menina…”. Ficamos assim a pensar que a
rapariga por quem o Marco andava embeiçado, era uma senhora séria e decente.
Mas não permanecemos iludidos por muito tempo, pois os versos seguintes
revelam-nos explicitamente tudo o que precisamos de saber: “E mexe, remexe, se
encosta, se enrosca. Se abre, se mostra pra mim. Me agarra, me morde, me
arranha. Não mude que eu quero você sempre assim”
A partir do momento em que pela primeira vez escutámos
estes versos, deu-se uma transformação estrutural em Portugal, pois desde
então, o nosso ideal de mulher nunca mais foi o mesmo.
Mas a profunda influência de Marco Paulo na psique
nacional, não se ficou por ai, mais à frente na mesma canção, surge a mais
perfeita síntese alguma vez feita: Qual Camões, qual Pessoa, qual Saramago,
nenhum deles em nenhum dos seus escritos, alguma vez alcançou o rigor sintético
e poético de Marco Paulo com o verso “Uma louca na cama, uma lady na mesa”.
Neste sentido, é de acreditar que a exatidão poética
de Marco Paulo é perfeita para trabalhar a competência “Linguagens e Textos”.
Vamos encerrar esta proposta pedagógica com a menos
conhecida canção “Amante, Irmão, Amigo”, de 1993. O motivo pelo qual esta canção
não atingiu o mesmo patamar de sucesso de outras, terá certamente a ver com ter
sido censurada pelas rádios. Facto que confirma o carácter disruptivo da arte
de Marco Paulo. Oiçamos:
Dizia assim o refrão: “É o teu corpo que eu procuro na
minha cama. Estás a fugir de quem te ama. O destino está traçado. Será
cumprido. Serei teu amante, irmão, amigo”.
Há quem maldosamente insinue que a palavra “irmão”,
que consta no título da canção, sugere alguma forma de incesto. Mas isso são
más línguas, pois quem está de boa fé percebe nitidamente que se trata de uma
metáfora.
O que verdadeiramente importa, é que contrariando uma
vez mais os paradigmas sociais existentes, Marco Paulo sossega-nos e diz-nos
que está tudo bem, que um homem e uma mulher amigos podiam envolver-se. Nada
obstava, nem era proibido, nem pecado. Com Marco Paulo não havia cá conversas
fiadas de “friendly zones” e coisas do género.
Tivéssemos nós tido consciência de que as coisas eram assim quando andávamos no 7° ano de escolaridade e a história com a amiga Suzete do 11° ano teria sido outra. Em qualquer dos casos, fica a lição para as gerações futuras, que a partir deste tema poderão trabalhar a competência do PASEO “Consciência e Domínio do Corpo”.
E pronto, assim terminamos o nosso esboço de proposta para introduzir a música Pop nas salas de aula, mais que não seja, pode ser que sirva de inspiração.
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