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A greve

 



Nos anos 80 ainda havia singles. Em princípio, do lado A do disco estava uma música bem boa, do lado B, uma menos boa. Por vezes, para surpresa dos próprios autores, a música bem boa estava no lado B. Outra vezes, nem de um lado, nem do outro. E, em casos raros, era tudo bem bom, fosse de que lado fosse.



Na década de 80, éramos nós ainda uns adolescentes inconscientes, e todos os dias ouvíamos falar em greves. Foram os anos de uma enorme crise económica. Havia continuamente fábricas a fechar, ordenados por pagar com muitos meses de atraso, uma inflação a atingir os 30%, muita miséria e até fome. Como seria previsível, perante tal panorama, as greves sucediam-se.

 

Se consultarmos os dados da Pordata, vamos verificar que o número de greves desde esses anos para cá baixou consideravelmente. Os anos com valores mais elevados, foram o de 1986, no qual houve 363 greves que envolveram 232 000 trabalhadores, e o de 1989, em que houve 307 greves, com 296 000 trabalhadores envolvidos.

A partir dos anos 80, os números foram continuamente descendo, sendo que, os últimos dados disponíveis, nos dizem que em 2021 houve 157 greves, com o envolvimento de 29 000 trabalhadores, ou seja, cerca de um décimo do ano de 1989.

Abaixo fica o link do site do Pordata, para quem eventualmente tiver interesse nesses números:

https://www.pordata.pt/portugal/greves+total++trabalhadores+abrangidos+e+dias-71 

Mas como antes dizíamos, nesses tempos éramos ainda adolescentes inconscientes, e portanto, pouco ou nada ligávamos às greves. Tínhamos coisas mais importantes em que pensar.


Ainda assim, houve uma greve a que verdadeiramente ligámos, decorreu no ano de 1986. Em pleno Mundial do México, os jogadores da seleção portuguesa de futebol decidiram entrar em greve. Tanto quanto sabemos, é um caso inédito na história dos mundiais de futebol.

Nessa época, o futebol não movia nem de perto nem de longe, os valores monetários que hoje move. Os jogadores pretendiam que os “prémios” fossem mais elevados, pois sentiam-se explorados pela sua entidade patronal, a Federação Portuguesa de Futebol. Os tempos eram outros, já se vê.

O acontecimento ficou conhecido como “O caso Saltillo”, nome da cidade mexicana que albergou a seleção, que acabou eliminada logo na fase inicial do torneio.



Em Portugal, só havia dois canais de televisão, a RTP 1 e o 2° canal. Estranhamente, havia coisas mais interessantes para ver nesses dois canais, do que agora há em centenas deles. Uma das coisas interessantes que havia para ver, era os grandes clássicos do cinema. Com muita frequência, em horário nobre, eram exibidas as maiores obras-primas da história da sétima arte.

 

Foi precisamente numa dessas sessões televisivas, que pela primeira vez compreendemos o que era uma greve e as divisões que criava. O filme chamava-se “Como era Verde o meu Vale” (1941, John Ford) e retratava a história de uma família que vivia num vale do País de Gales, no início do século XX.

No vale todos trabalhavam na mina de carvão. Neste entretanto, os patrões decidiram reduzir o salário dos empregados, que, por sua vez decidiram entrar em greve.

Os Morgan, a família protagonista do filme, teve então de decidir se participava na greve ou se permanecia fiel à sua ética tradicional, segundo a qual, ao trabalho nunca se falta, pois que é algo de sagrado.

A história tece-se em torno deste dilema moral e do modo como corrói a união e o espírito comunitário que até então havia no vale.

Na cena que aqui vos deixamos, os homens regressam a casa, sujos e cansados, após mais um dia de labor na mina. Pelo caminho, cantam. Mas não em inglês, a língua oficial que administrativamente lhes foi imposta e era falada pelos seus patrões. Cantam sim, na ancestral língua dos seus antepassados, que era só deles e os unia, o galês:




Se em “Como era Verde o meu Vale” os trabalhadores são gente justa, honesta e digna e os maus da fita são os patrões, já num outro clássico do cinema, “Há Lodo no Cais” (1954, Elia Kazan), os maus são os sindicalistas. Não que os patrões sejam gente exemplar, mas disso também ninguém estava à espera.

O personagem principal é interpretado por Marlon Brando, um estivador que teve oportunidade de ter sido um pugilista de grande classe, mas que acabou a trabalhar na estiva, como todos os outros da sua criação.

O seu irmão mais velho é o líder do sindicato, contudo, move-se mais pelos seus interesses, do que propriamente pelos daqueles que é suposto representar. Ao longo do desenrolar da narrativa, o personagem interpretado por Marlon Brando vai-se apercebendo que a greve entretanto convocada, serve fundamentalmente os corruptos interesses do seu irmão e menos os dos estivadores.

Consequentemente, começa a agir em conformidade e os seus consideram-no um traidor. É intimidado e espancado, no entanto, na cena final do filme, muito ensanguentado e quando parecia já KO, reergue-se, e, atravessando pelo meio dos grevistas, responde positivamente ao grito de “Let’s go to work”.

Todos o seguem. O seu irmão mais velho, o líder do sindicato, vocifera desesperadamente, mas já ninguém o ouve:




"Lisístrata" é uma famosa comédia teatral escrita por Aristófanes e encenada na antiga Atenas em 411 a.C.

A peça relata a decisão tomada pelas mulheres gregas, lideradas por Lisístrata, que, fartas da interminável guerra entre Atenas e Esparta, se trancam num templo e decidem iniciar uma greve sexual, de modo a forçar uma negociação de paz que ponha fim ao conflito.

Passados uns tempos, o embaixador ateniense, assim como o espartano, preocupados com a situação deprimente em que se encontravam os homens gregos, decidem firmar um acordo de paz e todos ficam felizes pela reconciliação.

 

No setor educativo, os atuais dirigentes governamentais e sindicalistas são homens, o que é estranho, pois segundo os dados da Pordata, a larguíssima maioria do pessoal docente são mulheres.

Desde 1974 para cá, muito mais do que duplicou o número de docentes do sexo feminino em exercício nos ensinos pré-escolar, básico e secundário.

Não sabemos se estes dados serão ou não importantes para as negociações que vão decorrer entre o governo e os sindicatos, em qualquer dos casos, aqui ficam:

 https://www.pordata.pt/portugal/docentes+do+sexo+feminino+em+exercicio+nos+ensinos+pre+escolar++basico+e+secundario+total+e+por+nivel+de+ensino-777


Abaixo, fica também uma canção de Chico Buarque de Holanda dos tempos dos discos em vinil e dos lados A e B. Inicia-se assim: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas…”

Como em tudo na vida, há sempre, pelo menos, dois lados por onde olhar. Neste caso, há muitos mais, é uma questão de olharem com atenção.

Com esta canção, Chico Buarque foi acusado de fazer a apologia da submissão das mulheres. O autor da canção disse que a sua intenção era exatamente a oposta: “Eu disse, mirem-se no exemplo daquelas mulheres que vocês vão ver o que vai dar”.

Cada um que escolha o seu lado, nós apenas vos deixamos a canção:

 



 


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