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Aventuras e desventuras de um professor com vocação para os serviços mínimos




Nós há muito que cumprimos os serviços mínimos. Nós quem? Perguntará quem nos lê. Nós, o personagem que aqui vos narra a história que se segue, respondemos nós.

Com efeito, temos levado uma vida inteira em serviços mínimos e, por estranho que pareça, até nos temos dado bem com isso.


Tudo terá começado há umas décadas atrás, quando entrámos para a primeira classe. Para nossa sorte, quando chegámos à escola primária, já sabíamos ler e escrever.

Logo passados os primeiros dias de aulas, verificámos que a nossa professora não sabia muito bem o que fazer connosco. Nós também não sabíamos muito bem o que estávamos para ali a fazer na sala de aula, quando tínhamos coisas bem mais interessantes na vida com que nos entreter. No entanto, ao que parece, a escola era obrigatória e portanto tínhamos mesmo de ir.

A professora fingia que nos ensinava a ler, e nós fingíamos que aprendíamos o “a,e,i,o,u”, quando na verdade já líamos perfeitamente qualquer tipo de texto sem a mais leve dificuldade.


Naquela época, pelo menos na escola pública que frequentámos, grande parte da miudagem tinha muitas dificuldades em aprender a ler. Não havia cá pré-escolar nem nada disso, e aquilo passavam-se meses só para a rapaziada aprender a pegar num lápis como deve ser. Para muitos, aprender a ler e a escrever era coisa que demorava praticamente dois anos.

Por assim ser, os nossos dois primeiros anos de escolaridade foram em serviços mínimos, pois tínhamos de acompanhar o ritmo da turma. Bastava estarmos para ali sentados umas quantas horas por dia a fazer tempo. De vez em quando, preenchíamos umas fichas ou as páginas do manual que a professora nos indicava e pronto, estava o dia feito, podíamos ir à nossa vida.

 

O melhor da escola era o espetáculo cómico que por vezes nos proporcionava. Quando a professora decidia interrogar oralmente um aluno com uma pergunta do estilo como é que se lê um “p” e um “a”, e o puto questionado respondia convicta e prontamente “tia”.

Era uma barrigada de riso. Por mais vezes que esta cena se repetisse, tinha sempre graça.

 

A aprendizagem da matemática também proporcionava boas gargalhadas, sobretudo, quando o aluno interrogado falhava uma pergunta do tipo quantos são 4 mais 3, e a professora lhe dizia para contar pelos dedos. Era de ir às lágrimas ver certos miúdos atrapalhados a tentar contar os dedos de uma mão com a outra e vice-versa sem atinarem qual delas era qual.

A determinado momento, ficavam paralisados, como que surpreendidos pela constatação da enorme quantidade de dedos que as suas mãos possuíam. Ao olharmos para os seus rostos perplexos, era impossível não nos desfazermos a rir.

Como é evidente, a professora ria-se connosco. Era uma senhora muito bem disposta. Em certas ocasiões, virava-se diretamente para nós, apontava para o coitado do aluno interrogado e perguntava-nos “É mesmo um calhau com olhos, não é?”.

Nós respondíamos que sim e toda a turma se ria com vontade, inclusive o dito “calhau com olhos”. Como a professora era inclusiva, uma vez terminada a risota, passava a mão pela cabeça do pobre rapaz, fazia-lhe uma festinha e dizia “coitadinho, é um bom menino”. Ele sorria beatificamente e a vida continuava a fluir tranquilamente.

 

O facto de na sala de aula nos rirmos da rapaziada, e de a professora não só não contrariar esse nosso comportamento, como ainda o incentivar, tinha como consequência imediata que nos recreios andássemos o tempo todo à pancada.

Qualquer aluno que tivesse sido motivo de riso na sala, chegava ao recreio e queria tirar a desforra. Por consequência, estávamos quase diariamente envolvidos em grandes pancadarias, sendo que, por vezes lutávamos sozinhos contra um grupo de rapazes enraivecidos, pois que na turma não havia só o “calhau com olhos”, havia também o “estúpido que nem uma porta”, o “atoleimado”, o que era “parvo todos os dias”, o “idiota chapado” e alguns mais. Era uma turma muito heterogénea.

 

E onde estavam as Assistentes Operacionais, que não impediam essas cenas de violência? Perguntarão os leitores. Estavam numa espécie de serviços mínimos, cá está.

Primeiro eram pouquíssimas, duas ou três para centenas de alunos, segundo, nessa altura ainda se designavam por contínuas e a sua função era apenas a de guardar as portas de entrada, e terceiro, estavam-se nas tintas, cada um que se safasse como conseguisse.

 

Uma vez, num dia em que a pancadaria foi mais intensa, decidimos chegar a casa e queixarmo-nos do que acontecia na escola. Se fosse hoje era um sururu, tínhamos vítimas, agressores, psicólogos, traumas e gritos de “bullying”, todavia, aqueles eram tempos mais serenos e nada disso existia.

Ao queixarmo-nos descobrimos que, relativamente à escola, também a parentalidade era exercida em estilo de serviços mínimos. O que nos disseram foi: “Tens que aprender a defender-te sozinho. E não me voltes a chegar a casa com um olho à Belenenses, se não quem te põe o outro negro sou eu”.

Uma vez que a equipa de Belém equipa de azul, nunca percebemos muito bem por que raio é que um olho negro, é um “olho à Belenenses”, mas pronto, deixemos isso agora, que não é esse o ponto da história.

 

Dado o contexto, não tivemos mais remédio que aprendermos a safar-nos. Umas vezes levávamos um par de solhas, noutras vezes conseguimos aplicar uma dose de bordoadas, de vez em quando iam-nos às ventas e de quando em vez nós iamos-lhes ao focinho. Foram recreios bem passados, cuja memória acarinhamos.

 

E assim passámos pela escola primária. Seguimos então para os seguintes ciclos de escolaridade e subsequente ensino secundário. Desta vez já não tínhamos nenhuma vantagem relativamente aos restantes alunos. Na escola primária tínhamos tido a vantagem de ter entrado já a saber ler e escrever, agora sabíamos tanto como os outros acerca das matérias das várias disciplinas.

Facto que não nos impediu de continuarmos em serviços mínimos. O único objetivo que tínhamos era não chumbar. Para que assim fosse, não podíamos descurar dois fatores, um era estarmos atentos de modo a nunca ultrapassarmos o limite de faltas por disciplina, o outro era conseguir tirar uma nota positiva nos testes.

 

Ainda não existiam folhas de Excel, mas tínhamos as nossas grelhas e tabelas de forma a termos um apertado controle das faltas que dávamos e jamais transpuséssemos o limite estabelecido. Quanto aos testes, isso era relativamente simples, bastava irmos copiando as respostas do manual escolar, pois que as questões colocadas nos testes mais não exigiam do que isso.

Com habilidade e discrição, a coisa fazia-se sem grandes problemas. Mudava-se uma ou outra palavra, alterava-se a ordem de umas quantas frases e já está, o tempo passa num instante e nisto concluímos o 12° ano sem nos chatearmos muito.

 

Aproveitámos todo o tempo que não passámos a estudar ou a fazer trabalhos de casa e as muitas horas livres de que dispúnhamos sempre que faltávamos às aulas, para nos educarmos e cultivarmos, ou seja, para aprender.

 

Ouvíamos música, líamos, íamos ao cinema e conhecíamos gente interessante. Tudo o que de importante sabemos, começámos a aprendê-lo nesses tempos. Tivemos muita sorte em desde tenra idade termos percebido que podíamos cumprir toda a escolaridade obrigatória em serviços mínimos, mesmo muita sorte.

O que teria sido de nós, se na nossa juventude não tivéssemos tido tempo para ler os livros que lemos, ver os filmes que vimos e para longamente passear e conversar? O que teria sido de nós se efetivamente tivéssemos de cumprir a escolaridade obrigatória em serviços máximos? Nem queremos imaginar, se calhar, éramos uns calhau com olhos. Assim não, educámo-nos, aprendemos e fomos para professores...

Imagem: A Pedra (1987), fotografia de Gérard Castello Lopes 

 

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