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O que esperar dos mais novos? Que façam zig-zag

 


Na imagem anexa, vê-se uma iluminura datada do século XIV, proveniente da antiga Pérsia, atual Irão. Na imagem há um caminho ziguezagueante.

 

Uma sociedade pode ser definida pelo que se espera dos mais novos. A escola é o local onde isso, o que se espera dos mais novos, mais nitidamente se materializa em ações e palavras concretas.

Nas sociedades mais preocupadas com a ordem, o rigor e a disciplina, do que com a liberdade, a criatividade e o futuro, o que fundamentalmente se espera dos mais novos, é que estejam calados, obedeçam e façam o que lhes mandam.

É este o caso do Irão, a antiga Pérsia, como é possível verificar em dois filmes atualmente em exibição no Porto, Coimbra e Lisboa. Ambos foram realizados pelo grande cineasta, fotógrafo e poeta, Abbas Kiarostami. 

Abaixo, uma fotografia da autoria de Abbas Kiarostami: “O Vento Levar-nos-á”.


Um dos filmes em exibição intitula-se “Trabalhos de casa”, e o outro “Onde fica a casa do meu amigo?”

É certo que são filmes já com alguns anos, de 1989 e 1987 respetivamente, todavia, a sua atualidade mantém-se intacta.

 

Hoje vamos falar-vos do filme “Onde fica a casa do meu amigo?”.

O filme inicia-se numa sala de aula com um professor a repreender o pequeno Nematzadeh, pois este fez os trabalhos de casa numa folha solta, em vez de ter usado o caderno destinado a esse efeito.

Como já não era a primeira vez que tal sucedia, o professor informa o aluno que, se aquilo se repetisse, seria expulso da sala.


À saída da escola, Nematzadeh brinca com seu amigo Ahmad. Algum tempo depois, após partirem, ao iniciar os trabalhos de casa, Ahmad apercebe-se de que trouxe o caderno de Nematzadeh por engano. Entra em desespero, pois sabe que, sem o caderno, no dia seguinte, o seu amigo será punido.

Ahmad pede à mãe que o deixe ir a casa do amigo para devolver o caderno, mas ela não lhe dá atenção e ordena-lhe que vá comprar pão. Ahmad aproveita a ocasião e percorre todo o caminho até ao lado mais distante da localidade para tentar encontrar a casa onde o amigo mora.

 

Ao longo do caminho, Ahmad pede indicações a alguns adultos, mas ou é ignorado, ou as informações que lhe são prestadas são confusas e inúteis. Por aqui percebemos, que a comunicação entre o mundo dos adultos e o dos mais novos é quase inexistente ou ineficaz.

Com efeito, dos mais novos não se espera que façam perguntas, por isso, ou pura e simplesmente não se lhes responde, ou responde-se-lhes de um modo descuidado.

 

Por assim ser, uma tarefa que em princípio pareceria simples, ou seja, levar o caderno ao amigo, transforma-se em algo deveras complexo.

 

Em certo momento, Ahmad encontra o seu avô, que o interroga sobre onde havia estado, o rapaz responde que fora comprar pão. O avô insiste dizendo que não perguntou o que estava a fazer, mas sim onde estava. Repetiu a pergunta por duas vezes. Silêncio.

O avô pede então ao rapaz que vá buscar os seus cigarros, pois que os deixou em casa. Ahmad explica-lhe que está com pressa, mas o adulto insiste. Um homem sentado ao lado do idoso avô, oferece-lhe um cigarro, mas este recusa.

 

O avô explica então ao homem sentado ao seu lado, que o seu objetivo não eram os cigarros, mas sim que Ahamad se eduque, para que no futuro seja um homem de bem. Conta-lhe então o seguinte:

"Quando eu era pequeno, a cada quinze dias, o meu pai dava-me umas moedas e umas palmadas. Algumas vezes, propositadamente, esquecia-se de me dar o dinheiro, mas nunca se esquecia de me dar umas boas palmadas, para que eu crescesse como um homem de bem. Repeti três vezes a minha pergunta e mesmo assim o meu neto não me respondeu. Devemos educá-los de modo que seja suficiente dizer-lhes as coisas apenas uma única vez."

 

O avô continua a conversa insistindo na importância de os mais novos escutarem os mais velhos, afirmando que é preciso ensinar-lhes a disciplina e a obediência.

 

Ao longo do filme, Ahmad passa por múltiplas peripécias, porém, nunca chega a encontrar a casa do seu amigo.

Na última cena, vemos novamente as crianças sentadas na sala de aula, mas Ahmad (aquele que deveria devolver o caderno ao amigo) está ausente. O professor entra. Um dos alunos avisa que o seu colega não veio, ao que o professor responde que os alunos só devem falar quando questionados.

 

O professor pede para ver os trabalhos de casa e os alunos colocam os seus cadernos sobre a mesa para que ele os verifique um por um.

O professor vai-se aproximando cada vez mais de Nematzadeh. A porta da sala abre-se, Ahmad entra e é repreendido pelo atraso. Dirige-se ao seu lugar, ao lado do colega que estava sem o caderno. Ahmad entrega o caderno ao amigo e revela-lhe que havia passado a noite anterior a fazer os seus trabalhos de casa.

O professor chega, olha o caderno de Nematzadeh e, sem detectar a falsificação, dá-lhe os parabéns, seguindo para a correção do próximo caderno. Termina assim o filme.

 

Se uma sociedade espera dos mais novos apenas que obedeçam e façam o que lhes mandam, é certo e sabido, que dos mais velhos vai esperar praticamente o mesmo, ou seja, que não levantem questões e façam caminho a direito.

Contudo, no filme, como na vida, as coisas nem sempre são assim. Não raras vezes, deparamo-nos com entrecruzilhadas e questionamo-nos sobre qual será o melhor caminho a seguir. Também não raras vezes, seguimos aos ziguezagues em busca daquele que é o nosso caminho.

Talvez por isso, vão aparecendo ao longo do filme imagens de caminhos ziguezagueantes. No fundo, são uma metáfora visual daquilo de que desde sempre andamos à procura, sejamos novos ou velhos: quem somos, donde vimos e para onde vamos.

Qualquer busca exterior que façamos pela “casa do nosso amigo” está destinada a falhar, pois que “a casa do nosso amigo” mais não é que a nossa própria casa, essa que teremos de encontrar no nosso interior, num qualquer canto triste e solitário do nosso coração.

É precisamente por isso, que ao longo do filme, nas fotografias de Abbas Kiarostami e também nas antigas iluminuras persas, vamos encontrando árvores solitárias no meio da paisagem. Como se estas, em última instância, compartilhassem connosco um mesmo destino.

Quando vamos em busca do nosso próprio caminho, ou seja, da nossa própria individualidade, sabemos que temos pela frente uma jornada triste e solitária, mas que é esse o custo da liberdade de sermos quem somos e de sermos nós, e não outros, a criar e a inventar a nossa vida.

 


As sociedades que se preocupam com a liberdade, a criatividade e o futuro, incentivam a que cada um encontre o seu próprio caminho. Mesmo que, num ou noutro momento, se levantem questões sobre qual é o caminho certo e o errado e porventura se siga em ziguezague.



Deixemos o Irão, a antiga Pérsia. Finalizemos o nosso texto regressando a Portugal. Aqui ficam dois excertos de um poema de José Régio:
“Vem por aqui” — dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
— Sei que não vou por aí!

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