Avançar para o conteúdo principal

Os fetichistas da língua



Nunca como agora houve tantos censores. Nós próprios, neste blog, somos constantes vítimas disso. Há quase sempre alguém que, não achando graça ao que escrevemos, faz uma denúncia nas redes sociais, impedindo assim a divulgação deste blog nessas mesmas redes por um, dois, três ou mais dias.

Podiam simplesmente não achar graça ao que escrevemos e ir à sua vida, mas não, para estes novos censores, isso não é o suficiente, o objetivo é calar quem fala.

Dantes, a censura estava entregue as instituições especializadas nessa área. Instituições, como por exemplo, a Santa Inquisição, a PIDE, o KGB ou a Gestapo. Hoje, parece que já não precisamos desses serviços especializados, pois censurar é algo que está ao alcance de todos. Relativamente à censura, vingou o “Faça você mesmo”.

 

Atualmente, seja lá quem for, pode simplesmente declarar-se ofendido ou perturbado pelo que leu, viu ou ouviu e imediatamente propor, ou até exigir, que se mande calar algo ou alguém. Para tal, basta que faça uma denúncia no sítio certo. Mesmo que não tenha razão, de certeza que vai haver quem lhe dê ouvidos e, por via dúvidas, se silencie quem quer que disse, escreveu, filmou ou encenou isso que a alguém ofendeu ou perturbou.

São estes os novos censores, os que não acham graça e se perturbam e ofendem por tudo e por nada.

Alguns destes novos censores, usam o terrorismo como argumento definitivo. Foi o que sucedeu em 2015 em Paris, com os ataques à revista humorística Charlie Hebdo. O humor satírico característico desta revista, era algo que os perturbava e ofendia.

Mais recentemente, em Nova Iorque, o romancista Salman Rushdie foi atingido com várias punhaladas por alguém que não apreciava as suas histórias e, por consequência, o tentou eliminar.

Histórias e humor são coisas a que os censores nunca acharam graça, nem os de dantes, nem os de agora, nisso não são diferentes.

A favor dos novos censores, excepção feita aos terroristas, pode dizer-se que na sua larguíssima maioria, não são gente violenta, não pretendem eliminar fisicamente ninguém, nem com bombas, nem com punhais. Maioritariamente, são até pessoas muito bem intencionadas, mas, como é uso dizer-se, de boas intenções está o inferno cheio.

Na verdade, o que maioria dos novos censores pretende eliminar são sobretudo alguns livros ou umas certas frases, expressões e palavras. Já agora que falamos disso, pretendem também eliminar algumas imagens, uns filmes, uns quantos quadros e uma ou outra escultura. Se formos a ver bem, também há roupas de que não gostam, umas quantas músicas e uns certos estilos de vida que desprezam. Em síntese, é coisa pouca, o que pretendem eliminar.

A motivação destes novos censores é justa e boa, querem proteger-nos. Querem sobretudo proteger os que entre nós são mais frágeis, ou seja, todos aqueles para quem uma palavra, uma frase ou uma imagem poderá ser ofensiva e perturbadora. 

Vejamos um exemplo: a palavra gordo. Ou então gorda, que para o caso também serve. Gordo e gorda são palavras que para os novos censores deviam ser eliminadas, pois são ofensivas e perturbadoras. Basta pensarmos na quantidade de badochas e balofos, ou de anafadas e potes de banha, que por aí andam, para percebermos o quão ofendidos e perturbados esses rechonchudos e essas roliças podem ficar se ouvirem a palavra gordo ou gorda.

Nós próprios, que já estivemos mais elegantes antes do que nos tempos que correm, compreendemos esses novos censores e, por consequência, sentimo-nos tentados a concordar com a eliminação das palavras gordo e gorda. É mais simpático do que fazer dieta ou ir penar para um ginásio.

Um outro exemplo: a palavra feio, ou feia, que vai dar no mesmo. É de eliminar também, claro está. Quem quer que seja desengraçado, ou até mesmo hediondo ou horroroso, não tem de estar em constante sofrimento por saber que a palavra feio/a existe. A bem da humanidade, acabe-se com essas palavras, fica logo tudo mais bonito.

Só mais um exemplo: a palavra doido. E doida também, como é evidente. Extingam-se também essas duas. Pois se todos nós sabemos que há pessoas chanfradas, para quê usarmos a palavra doido/a. Tem algum sentido dizermos a alguém que é doido varrido? Claro que não. Aos doidos é deixá-los estar sossegados com as suas pancadas, não há necessidade nenhuma de os fazermos sentir pior usando essas ofensivas e perturbadoras palavras. Essa é que é essa.

 

Com certeza que os nossos leitores mais atentos à atualidade literária, sobretudo à literatura infantil, já perceberam que todo este discurso se relaciona com o facto da editora inglesa dos livros Roald Dahl (1916-1990) ter decido reescrever a sua obra, eliminando as palavras Fat, Ugly e Crazy.


https://observador.pt/2023/02/19/gordo-passa-a-ser-enorme-feio-desaparece-livros-de-roald-dahl-em-ingles-alterados-em-favor-de-linguagem-mais-inclusiva/

 

Para quem não saiba, os livros de Roald Dahl são clássicos da literatura infantil, estão traduzidos em dezenas de línguas e muitos deles foram adaptados ao cinema.

Roald Dahl escreveu também o argumento para um James Bond: “007 - Só Se Vive Duas Vezes”. Um aparte, vale a pena ouvir o tema principal deste filme cantado por Nancy Sinatra, que se inicia assim: "You only live twice, or so it seems, one life for yourself, and one for your dreams".



Durante décadas e por sucessivas gerações, não consta que alguém se tenha sentido ofendido ou perturbado pela leitura dos seus livros. Muito pelo contrário. Contudo, os novos censores pressentem nesses mesmos livros potenciais ofensas ou perturbações.

Mais do que isso, os novos censores sentem ter um especial dever de proteger e  educar as atuais criancinhas. São as crianças quem mais têm de ser protegidas das palavras bárbaras que os seus pais, avós e demais antepassados por toda a vida usaram.

São também crianças que no futuro falarão uma nova língua, na qual palavras ofensivas e perturbadoras já não existirão. Aguardemos então por esses amanhãs que cantam, em que só as palavras belas e gentis serão proferidas. Aguardemos.

Em boa verdade, é nossa convicção que essa idade de ouro pela qual esperam os novos censores, nunca irá chegar. O problema dos novos censores, é que confundem as palavras e as coisas e é por isso que lhes chamamos fetichistas da língua.

Se calhar, não lhes fazia mal lerem o livro de Michel Foucault, precisamente intitulado, “As palavras e as coisas”. É provável que com essa leitura percebessem a diferença entre uma coisa e outra.

Fica a sugestão de leitura, mas, se querem saber, não há necessidade de a seguirem, bastava um pouco de sensatez.

 


 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Os professores vão fazer greve em 2023? Mas porquê? Pois se levam uma vida de bilionários e gozam à grande

  Aproxima-se a Fim de Ano e o subsequente Ano Novo. A esse propósito, lembrámo-nos que serão pouquíssimos, os que, como os professores, gozam do privilégio de festejarem mais do que uma vez num mesmo ano civil, o Fim de Ano e o subsequente Ano Novo. Com efeito, a larguíssima maioria da população, comemora o Fim de Ano exclusivamente a 31 de dezembro e o Ano Novo unicamente a 1 de janeiro. Contudo, a classe docente, goza também de um fim de ano algures no final do mês de julho, e de um Ano Novo para aí nos princípios de setembro.   Para os nossos leitores cuja agilidade mental eventualmente esteja toldada pelos tantos comes e bebes ingeridos na época natalícia, explicitamos que o fim do ano letivo é em julho e o início em setembro. É disso que aqui falamos, esclarecemos nós, para o caso dessa subtil alusão ter escapado a alguém.   Para além da classe docente, são poucos os que têm esta oportunidade, ou seja, a de ter múltiplas passagens de ano num só e mesmo ano civil. Entre

Que bela vida a de professor

  Quem sendo professor já não ouviu a frase “Os professores estão sempre de férias”. É uma expressão recorrente e todos a dizem, seja o marido, o filho, a vizinha, o merceeiro ou a modista. Um professor inexperiente e em início de carreira, dar-se-á ao trabalho de explicar pacientemente aos seus interlocutores a diferença conceptual entre “férias” e “interrupção letiva”. Explicará que nas interrupções letivas há todo um outro trabalho, para além de dar aulas, que tem de ser feito: exames para vigiar e corrigir, elaborar relatórios, planear o ano seguinte, reuniões, avaliações e por aí afora. Se o professor for mais experiente, já sabe que toda e qualquer argumentação sobre este tema é inútil, pois que inevitavelmente o seu interlocutor tirará a seguinte conclusão : “Interrupção letiva?! Chamem-lhe o quiserem, são férias”. Não nos vamos agora dedicar a essa infrutífera polémica, o que queremos afirmar é o seguinte: os professores não necessitam de mais tempo desocupado, necessitam sim d

A propósito de “rankings”, lembram-se dos ABBA? Estavam sempre no Top One.

Os ABBA eram suecos e hoje vamos falar-vos da Suécia. Apetecia-nos tanto falar de “rankings” e de como e para quê a comunicação social os inventou há uma boa dúzia de anos. Apetecia-nos tanto comentar comentadores cujos títulos dos seus comentários são “Ranking das escolas reflete o fracasso total no ensino público”. Apetecia-nos tanto, mas mesmo tanto, dizer o quão tendenciosos são e a quem servem tais comentários e o tão equivocados que estão quem os faz. Apetecia-nos tanto, tanto, mas no entanto, não. Os “rankings” são um jogo a que não queremos jogar. É um jogo cujo resultado já está decidido à partida, muito antes sequer da primeira jogada. Os dados estão viciados e sabemos bem o quanto não vale a pena dizer nada sobre esse assunto, uma vez que desde há muito, que está tudo dito: “Les jeux sont faits”.   Na época em que a Inglaterra era repetidamente derrotada pela Alemanha, numa entrevista, pediram ao antigo jogador inglês Gary Lineker que desse uma definição de futebol, ao

Avaliação de Desempenho Docente: serão os professores uns eternos adolescentes?

  Há já algum tempo que os professores são uma das classes profissionais que mais recorre aos serviços de psicólogos e psiquiatras. Parece que agora, os adolescentes lhes fazem companhia. Aparentemente, uns por umas razões, outros por outras completamente diferentes, tanto os professores como os adolescentes, são atualmente dos melhores e mais assíduos clientes de psicólogos e psiquiatras.   Se quiserem saber o que pensam os técnicos e especialistas sobre o que se passa com os adolescentes, abaixo deixamos-vos dois links, um do jornal Público e outro do Expresso. Ambos nos parecem ser um bom ponto de partida para aprofundar o conhecimento sobre esse tema.   Quem porventura quiser antes saber o que pensamos nós, que não somos técnicos nem especialistas, nem nada que vagamente se assemelhe, pode ignorar os links e continuar a ler-nos. Não irão certamente aprender nada que se aproveite, mas pronto, a escolha é vossa. https://www.publico.pt/2022/09/29/p3/noticia/estudo-revela-dep

Aos professores, exige-se o impossível: que tomem conta do elevador

Independentemente de todas as outras razões, estamos em crer que muito do mal-estar que presentemente assola a classe docente tem origem numa falácia. Uma falácia é como se designa um conjunto de argumentos e raciocínios que parecem válidos, mas que não o são.   De há uns anos para cá, instalou-se neste país uma falácia que tarda em desfazer-se. Esse nefasto equivoco nasceu quando alguém falaciosamente quis que se confundisse a escola pública com um elevador, mais concretamente, com um “elevador social”.   Aos professores da escola pública exige-se-lhes que sejam ascensoristas, quando não é essa a sua vocação, nem a sua missão. Eventualmente, os docentes podem até conseguir que alguns alunos levantem voo e se elevem até às altas esferas do conhecimento, mas fazê-los voar é uma coisa, fazê-los subir de elevador é outra.   É muito natural, que sinta um grande mal-estar, quem foi chamado a ensinar a voar e constate agora que se lhe pede outra coisa, ou seja, que faça com que um el

És docente? Queres excelente? Não há quota? Não leves a mal, é o estilo minimal.

  Todos sabemos que nem toda a gente é um excelente docente, mas também todos sabemos, que há quem o seja e não tenha quota para  como tal  ser avaliado. Da chamada Avaliação de Desempenho Docente resultam frequentemente coisas abstrusas e isso acontece independentemente da boa vontade e seriedade de todos os envolvidos no processo.  O processo é a palavra exata para descrever todo esse procedimento. Quem quiser ter uma noção aproximada de toda a situação deverá dedicar-se a ler Franz Kafka, e mais concretamente, uma das suas melhores e mais célebres obras: " Der Prozeß" (O Processo) Para quem for preguiçoso e não quiser ler, aqui fica o resumo animado da Ted Ed (Lessons Worth Sharing):   Tanto quanto sabemos, num agrupamento de escolas há quota apenas para dois a cinco docentes terem a menção de excelente, isto dependendo da dimensão do dito agrupamento. Aparentemente, quem concebeu e desenhou todo este sistema de avaliação optou por seguir uma determinada esco

Pode um saco de plástico ser belo?

  PVC (material plástico com utilizações muito diversificadas) é uma sigla bem gira, mas pouco usada em educação. A classe docente e o Ministério da Educação adoram siglas. Ele há os os QZP (Quadros de Zona Pedagógica), ele há os NEE (Necessidades Educativas Especiais), ele há o PAA (Plano Anual de Atividades), ele há as AEC (Atividades de Enriquecimento Curricular), ele há o PASEO (Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória), ele há a ADD (Avaliação do Desempenho Docente), ele há os colegas que se despedem com Bjs e Abc, ele há tantas e tantas siglas que podíamos estar o dia inteiro nisto.   Por norma, a linguagem ministerial é burocrática e esteticamente pouco interessante, as siglas são apenas um exemplo entre muitos outros possíveis. Foi por isso com surpresa e espanto, que num deste dias nos deparámos com um documento da DGE (Direção Geral de Educação) relativo ao PASEO, no qual se diz que os alunos devem “aprender a apreciar o que é belo” .  Assim, sem mais nem menos

Luzes, câmara, ação!

  Aqui vos deixamos algumas atividades desenvolvidas com alunos de 2° ano no sentido de promover uma educação cinematográfica. Queremos que aprendam a ver imagens e não tão-somente as consumam. https://padlet.com/asofiacvieira/q8unvcd74lsmbaag

Se a escola não mostrar imagens reais aos alunos, quem lhas mostrará?

  Que imagem é esta? O que nos diz? Num mundo em que incessantemente nos deparamos com milhares de imagens desnecessárias e irrelevantes, sejam as selfies da vizinha do segundo direito, sejam as da promoção do Black Friday de um espetacular berbequim, sejam as do Ronaldo a tirar uma pastilha elástica dos calções, o que podem ainda imagens como esta dizer-nos de relevante? Segundo a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, no pré-escolar a idade média dos docentes é de 54 anos, no 1.º ciclo de 49 anos, no 2.º ciclo de 52 anos e no 3.º ciclo e secundário situa-se nos 51 anos. Feitas as contas, é quase tudo gente da mesma criação, vinda ao mundo ali entre os finais da década de 60 e os princípios da de 70. Por assim ser, é tudo gente que viveu a juventude entre os anos 80 e os 90 e assistiu a uma revolução no mundo da música. Foi precisamente nessa época que surgiu a MTV, acrónimo de Music Television. Com o aparecimento da MTV, a música deixou de ser apenas ouvida e passou

Nas escolas há pormenores que entram pelos olhos adentro

  Talvez não haja no mundo país algum em que a atenção aos pormenores seja tão intensa como em Itália. É precisamente isso, o que distingue os italianos do resto do mundo.   Com efeito, a atenção aos pormenores explica muitas coisas acerca de Itália, desde a elegância no vestir até à tipicidade única da sua gastronomia popular, passando pela sua beleza urbana, pela arte e, inclusivamente, por certas características no modo como as equipas italianas jogam futebol.  A esse propósito, lembrámo-nos da seguinte história. Há uns anos, em 2016, numa escola no centro de Itália, Matteo, um “ragazzo” de oito anos, escreveu um texto no qual descreveu uma flor como sendo “petaloso”, ou seja, cheia de pétalas.   Em italiano, pétala é uma palavra do género masculino, daí o “petaloso”. Como em português, pétala é uma palavra do género feminino, nós vamos traduzi-la por “petalosa”.   A palavra não existia, nem em italiano, nem em nenhuma outra língua. Nenhum dicionário a acolhia. Contudo, a pr