Temos lido por
aí que a classe docente era um gigante adormecido, que agora despertou. São
belas palavras, mas não é disso que vos vamos falar. Ou se calhar é só disso
que vamos falar.
Queremos que as
palavras e frases que escrevemos digam coisas diferentes, a pessoas diferentes.
Queremos também, assim nos ajude o engenho e arte, escrever palavras e frases que
não digam o que outros, tenham ou não razão, já antes disseram.
Seja em que
circunstância da vida for, frases velhas mais não fazem do que prolongar com
palavras gastas a agonia de algo que já não serve, um cadáver adiado que apenas
aguarda o sono eterno.
Só as novas
frases poderão fazer com que as palavras se reinventem e voltem a ser sentidas
como verdadeiras e profundas. É só dessas novas palavras e frases, dessas que
se sentem, que nascem as novas vidas.
Quase nunca são
aqueles que ocupam as altas cátedras do poder, seja o poder de que tipo for,
quem diz o que de mais profundo e verdadeiro uma língua permite dizer. Quase
sempre são as conversas simples, bem como os poetas e os cantadores quem o diz.
Diz o que uma
língua de mais fundo e verdadeiro tem para dizer, quem sente. Alguém com poder
usa as palavras e as frases mantendo-as a uma certa distância e até com alguma
frieza, como se não as sentisse. Usa-as servindo-se delas, como se a língua
fosse tão-somente uma ferramenta utilitária, um mero instrumento prático para
se comunicar, informar, condicionar ou legislar.
As palavras e
frases quando usadas com uma finalidade restrita, são sempre um tanto ou quanto
insípidas, mesmo quando ditas aos gritos, provocam-nos frequentemente sono.
Quem nunca se
aborreceu a ler uma ata? Quem nunca adormeceu durante um noticiário? Quem nunca
bocejou perante um discurso, por muito inflamado que esse possa ser? Quem?
Numa assembleia,
numa reunião ou num “meeting”, não raras vezes as palavras são as mesmas de
sempre. Frases feitas, lugares comuns e banalidades ditas do alto das milhentas
cátedras que por todo lado existem. Palavras que ensonam porque todos mais não
fazem do que macaquear as palavras já muitas vezes ditas, sem que ninguém
verdadeiramente as sinta.
Já as palavras
que usamos para simplesmente conversar com quem nos diz coisas sem mais nem
porquê, já essas, divertem-nos. Não nos cansam também as palavras que usamos
para escrever um poema ou para cantar uma canção, pois são vivas e exultantes.
São palavras sentidas. Palavras despertas, que não nos deixam dormir.
As conversas
simples, bem como as dos poetas e cantadores, não se servem da língua de um modo
utilitário, usam-na porque querem dizer o que se sente. Como se com essas
palavras e frases se tentasse dizer o que de mais fundo nos vai por dentro.
O que se sente
nas próprias entranhas e vísceras. Mais concretamente, o que se sente naquela
que é a mais nobre de todas as vísceras: o coração.
Não é portanto
no cérebro, no lugar do pensar, mas sim no coração, no lugar do sentir, que nasce
o que de mais profundo e verdadeiro uma língua permite dizer. E quem o diz, não
fala de cátedra, mas di-lo em conversas simples e descontraídas. E quem também
o diz, são os poetas e cantadores, ou seja, todos aqueles que não têm medo de
ter o coração ao pé da boca.
Olhemos dois
exemplos ilustrativos do que aqui dizemos. Primeiro um texto pensado, cheio de
fórmulas, intricado e cerebral, em síntese, um texto jurídico. Depois, um
poema, um texto apenas sentido.
Aqui fica um entediante texto jurídico:
“Venho por meio
desta, remanescer ao apóstrofo da minha cliente, a qual foi constituída como
depoente deste processo, aqui emancipado na forma das regras da lei de
auditorias, onde fica claro, no artigo 5º do parágrafo 2 que, todo e qualquer
cidadão, tem como direito adquirido, a tramitação latente da qual o conjúrio
declaratório não caracteriza a acusada como fator processual.
Baseado na tese
jurisprudente, solicito a averbação comprobatória da qual minha cliente, é a
réu deste processo acusatório sem ter, no entanto, nenhuma prova que se
comprova a autuação incriminatória. Após o aqui exposto, solicito a V. Exa. que
faça a avaliação refratária deste requerimento”.
Depois do castigo, ouçamos agora o poema numa versão retirada do disco musicado por Rodrigo Leão, “Entre nós e as palavras”. Um poema de Mário Cesariny intitulado “Há uma hora”. Inicia-se assim:
"Há uma hora, há uma hora certa, que um milhão
de pessoas está a sair para a rua…"
Num poema
inauguram-se novas frases e as palavras ganham outros significados. Num poema é
quando é dito pela primeira o que ainda nunca tinha sido dito. É quando é
trazido à língua, o que antes era apenas sentimento. O que antes somente se
agitava nas entranhas e nas vísceras. O que antes tínhamos no coração mas não
sabíamos dizer.
Se um poema
consegue dizer o que ainda estava por dizer, também o mesmo pode suceder numa
conversa simples em que se dizem coisas sem mais nem porquê. E outro tanto pode
acontecer numa canção.
Mas se assim é,
se podemos conversar, ler poesia, escutar uma canção e ganhar inspiração para
inventar palavras sentidas, vivas e despertas, ou seja, uma nova vida, para quê
perdermos tempo com palavras e frases que teimam em só saber repetir-se.
Para quê
perdermos tempo com batalhas que ganhas ou perdidas, não nos vão fazer sair da
velha vida nem conseguir evitar o fim que já se pressente?
Para que nos
serve ouvir os responsáveis políticos a repetir semanalmente as mesmas velhas e
gastas frases? Para que nos serve que se gritem continuamente as mesmas
palavras de ordem e protesto? Para nada, pois que a partir de um dado momento o
cansaço instala-se, e é certo e sabido que já ninguém vai ligar nenhuma nem ao
que uns, nem ao que os outros, dizem.
Quando isso
suceder, essa será a hora, a hora certa, em que um milhão de pessoas irá fazer
ó-ó, incluindo o gigante. Esperemos que para o gigante, o sono não seja eterno.
A continuarmos
pelo caminho que uns e outros têm percorrido nos últimos tempos, a não se
inventar um outro caminho, tememos bem que em breve, para o gigante não vá haver
uma nova vida.
Para terminarmos, o imenso conversador, poeta e cantador Chico Buarque com o tema “Todo sentimento” que se inicia com a frase “Preciso não dormir…
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