Nos últimos
anos, as escolas portuguesas não conseguiram resistir à invasão cultural e
comercial vinda da América do Norte e, como a restante população, sucumbiram a
tradições festivas que, para nós, pouco ou nada significam.
Há uns poucos
meses comemorou-se o Halloween por quase todas as escolas deste país e, no
passado dia 14 de fevereiro, foi a vez do Valentine's Day.
Já só nos falta
começarmos a comemorar o dia nacional norte-americano, o 4 de julho. Mais cedo
que tarde, havemos de lá chegar.
Tudo isto num
país onde cerca de 50% dos portugueses desconhece a razão pela qual o dia 1 de
dezembro é feriado nacional. A reportagem emitida pela SIC Notícias em 1 de
dezembro de 2022, é muito ilustrativa acerca desse ponto, ou seja, acerca de
não sabermos quem somos:
https://sicnoticias.pt/pais/2022-12-01-Sabe-o-que-se-comemora-no-1-de-Dezembro--4bafe250
Festejar o que nos é estrangeiro e só pela rama conhecemos o seu significado, é festejar um vazio. Pode ser um festejo muito barulhento, agitado e divertido, nem por isso deixa de ser vazio. Para ser mais do que isso, faltam-lhe raízes.
Não admira
portanto, que na nossa amada pátria, proliferem os distúrbios psico-emocionais
entre ricos e pobres e entre velhos e novos. Quando não sabemos quem somos, e
nos dedicamos antes a entusiasticamente festejar aquilo de que não conhecemos
as raízes nem sabemos o significado, não é o barulho, nem a agitação, nem o
divertimento que vão conseguir preencher o vazio que em nós sentimos.
Mas não é do Halloween, nem sequer do dia 14 de fevereiro que agora vos queremos falar. Queremos antes falar-vos de uma outra data, do dia 13 de fevereiro.
Desde 2011, é no 13 de fevereiro que se assinala o Dia Mundial do Rádio. Bem sabemos que hoje em dia há dias mundiais para tudo e mais alguma coisa, desde as coisas mais ridículas, até às mais importantes, ainda assim, estamos em crer que o rádio merece ser assinalado por um dia mundial. Mereceria também, que de futuro, as escolas fizessem eco desse dia.
A tecnologia
digital que atualmente possuímos, permite-nos comunicar com o mundo inteiro em
poucos segundos, escolher a nosso bel-prazer ouvir uma qualquer canção de entre
as milhões disponíveis na internet, e escutar “podcasts” à hora que muito bem nos
aprouver.
Neste mundo
contemporâneo, um rádio pode parecer-nos um objeto antiquado, uma relíquia do
passado, uma coisa que já só tem graça por ser uma cena tipo “vintage”. Mas por
muito que tudo isso assim nos possa parecer, nada disso efetivamente assim o
é.
O rádio é um
objeto que nos desperta “mixed feelings”. Veio de tempos distantes e atualmente
há tecnologias de comunicação muito mais avançadas. Mas dito isto, e ao
contrário do que sucedeu por exemplo com as grafonolas, as disquetes ou as
cassetes, o rádio não se tornou obsoleto. Reinventa-se e vive.
Há razões
práticas pelas quais a comunicação via rádio continua a ser bastante útil. Com
efeito, é um meio de baixo custo e popular, que consegue alcançar as áreas mais
remotas e as pessoas mais marginalizadas. Pode também continuar a transmitir,
mesmo quando outras tecnologias param de funcionar, como em casos de
comunicações de emergência ou após um desastre natural.
Exposta a sua
presente utilidade, para esta nossa conversa, não nos interessam tanto as
razões estritamente práticas, mas sim razões que poderíamos designar como sendo
de carácter histórico-sentimental.
No tempo dos nossos avós, antes de haver televisão, o rádio era o meio de comunicação social de massas por excelência. No entanto, nós não somos desses tempos, só sabemos que assim foi por ter ouvido dizer. O que sabemos de vida vivida, é o lugar que o rádio ocupava na nossa existência nas décadas de 70, 80 e 90 do século XX.
Nessa época, o
rádio fazia-nos constantemente companhia. Quando comíamos, quando estudávamos,
quando trabalhávamos e até enquanto dormíamos. Todavia, ao contrário do que
sucede com as tecnologias atuais, o rádio não monopolizava a nossa atenção.
Podia-se perfeitamente
estudar e/ou trabalhar e ter o rádio a dar-nos música. O rádio era uma espécie
de pano de fundo para qualquer coisa que fizéssemos. Podia-se conversar com o
rádio ligado. Despertava-se, vivia-se e adormecia-se ao som de um rádio.
Hoje, não raras
vezes, olhamos para uma esplanada de um qualquer café e vemos várias pessoas
sentadas à mesma mesa, cada qual com o seu Smartphone, cada qual consumida pelo
seu ecrã. Os ecrãs são possessivos, não gostam que partilhemos a nossa atenção
com nada nem com ninguém, querem-nos todos só para si.
Por contraste,
dantes, íamos ao acaso pelas ruas, espreitávamos para dentro de uma tasca e
via-se homens que jogavam à bisca, que bebiam um copo de três e falavam da
vida.
Envolvia-os sempre uma espécie de banda sonora, ou seja, uma música vinda de um rádio, frequentemente um fado. Conseguiam conviver uns com outros e simultaneamente ouvir rádio, pois que este não lhes requisitava toda a sua atenção.
Em domingos de
bola, o rádio assumia um protagonismo maior do que o habitual e reclamava mais
atenção. Entre as 15h e as 17h, havia o relato do desafio futebolístico.
Era uma excepção à regra, pois normalmente o rádio não necessitava assim de tanta atenção. Estava ali, dava uma atmosfera melódica ao que acontecia, marcava as horas, fazia companhia, mas a vida prosseguia ao seu ritmo, com as suas pressas e vagares e com as suas arrelias, melancolias e alegrias.
Mesmo quando
estávamos estáticos e parecia que a única coisa que fazíamos era ouvir
atentamente o que passava no rádio, ainda assim, não era só isso o que
fazíamos. Ouvia-se o rádio, mas ao mesmo tempo o pensamento voava. Sonhava-se
ao som de uma música.
E era também ao
som de uma música que floresciam desejos e a imaginação se alargava. O que
ouvíamos no éter não impedia, muito pelo contrário, que a nossa mente
deambulasse e viajasse.
Nada disso
sucede quando estamos agarrados a um ecrã digital. Segundo os neurologistas,
parece que sucede inclusivamente o oposto, a mente mirra e o espírito
contrai-se. O cérebro fica exausto com o fluxo contínuo de imagens e de
informações e, por consequência, estanca.
Uns dias antes
do Dia Mundial do Rádio, e portanto antes do Valentine's Day, morreu na sua
casa em Los Angeles, o compositor Burt Bacharach. Tinha 94 anos.
Burt Bacharach
terá sido o compositor que maior número de êxitos musicais compôs nos quais se
falava sobre relações amorosas.
Durante décadas, sobretudo entre os anos 60 e finais dos 80, compôs temas atrás de temas cujo sucesso foi retumbante. Claro está, que uma enorme parte do seu êxito se deve à rádio. Era na rádio que pela primeira vez se ouviam as canções, cujos discos posteriormente se venderiam aos milhões.
Durante larga parte da sua longa carreira, houve muito quem associasse as composições de Burt Bacharach ao que normalmente se designa como “Easy listening”.
“Easy Listening”
é um termo depreciativo para desqualificar canções com melodias ligeiras e
letras com palavras e frases comuns. Também há quem lhe chame música de
elevador ou música para aeroportos.
No caso de Burt Bacharach, essa desqualificação assenta em dois enormes equívocos. Um: na crença que só a gravidade é profunda. Dois: na crença que as palavras e frases simples não conseguem dizer coisas complexas.
A crença de Burt Bacharach era a oposta, primeiro, a profundidade não tem necessariamente de se apresentar com modos graves e sérios, e segundo, consegue-se dizer as mais complexas verdades sobre as relações humanas com palavras simples.
Foi
provavelmente por isso, que as suas canções se adaptaram tão bem ao meio
radiofónico. Aos ouvintes, mesmo quando ocupados noutras tarefas, era-lhes
possível pressentir nas canções a profundidade e a complexidade da nossa
existência e das nossas relações. Isto, sem que tivessem de ficar macambúzios,
e sem que tivessem também de forçar o entendimento para descodificar palavras
ou frases intricadas.
Burt Bacharach
quebrou todas as regras que constavam dos manuais da música Pop. Uma por uma.
Mas fez mais, nas suas canções misturou todas as “disciplinas” musicais. Teve
uma sólida formação clássica num prestigiado conservatório. Depois, durante
noites e noites, percorreu todos os bares de Jazz de Nova Iorque. Aprendeu
também os sons da Bossa-Nova e de outros ritmos e melodias da América Latina.
E, finalmente, com tudo isso, compôs melodias que, à falta de melhor nome,
podemos chamar Pop-Music.
O que de significativo nos ensinam as canções de Burt Bacharach? Que sentido delas podemos retirar para as nossas breves, tristes vidas? Que vazios preenchem? A título de exemplo vamos escolher duas delas, entre muitas outras possíveis.
Comecemos por “Walk on By”. A canção fala-nos de um abandono. Há poucas coisas na vida que nos deixam tão sem sabermos quem somos como um abandono. Mas, mesmo assim sendo, a canção consegue falar-nos disso sendo “cool”. Consegue ser “cool” sem deixar de ser profunda e complexa e simultaneamente ligeira. É um equilíbrio só ao alcance de certos génios.
Terão sido muitos os abandonados, os que se sentiram sós, vazios e para quem a vida perdeu o significado. Porém, entre todos esses, os que ouviram esta canção, com certeza que nela pressentiram, que mesmo na mais funda tristeza, há uma leveza, um caminho, uma maneira de “Walk on By”.
Walk on By na
voz contida da elegantíssima Dionne Warwick:
A segunda canção
é “I Say A Little Prayer”. Aqui há muito pouco a dizer. A letra da canção
descreve um dia de labor. Desde o acordar manhã cedo, ao colocar a maquilhagem
e apanhar o transporte até ao momento da pausa para um café.
A letra da canção diz que a única coisa que traz sentido e significado, que preenche o vazio e permite aguentar a vidinha, é sempre “um outro”. Aquele para quem dizemos uma pequena prece.
I Say A Little
Prayer na voz fogosa da destemida Aretha Franklin:
Tudo isto, ou muitas outras coisas mais, poderiam ter sido ditas para assinalar do Dia Mundial do Rádio. Fica para a próxima, que agora vem aí o Carnaval e há desfiles de escolas de samba em Sesimbra, Torres Vedras e Loulé. É mais uma ocasião para celebrarmos de modo esfuziante as nossas mui nobres e ancestrais tradições. O nosso vazio.
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