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A luta continua: os números de uns e os números de outros


A matemática é bela, nós portugueses é que não gostamos dela. Não gostamos porque ao invés de ela nos mostrar as suas belas formas e sofisticados raciocínios, veste-se de roupagens feitas de manuais escolares pouco imaginativos, de velhas sebentas, de exercícios estéreis, de problemas inúteis e de secas folhas Excel.

Neste nosso país ninguém percebe nada de números. Nem percebemos, nem queremos perceber. O nosso desamor à matemática é grande e vem de longe. Dantes, como agora, inicia-se logo nos bancos da escola e prolonga-se pela vida afora.

 

Ao longo dos anos, muitos foram os projetos e os programas educativos implementados para tentar solucionar este estado de coisas e mostrar como a matemática, para além de útil, é também gira e divertida. Contudo, feitas as contas, noves fora resto zero, o resultado foi praticamente nulo.

Por muito útil, gira e divertida que a matemática seja apresentada, ninguém a passa a amar mais por causa disso, nem nada que se pareça. O que eventualmente faria com que a amassem, não é o quão útil, gira e divertida é, mas sim como já antes dissemos, a beleza das suas formas e os seus sofisticados raciocínios.

Enquanto não se lhe vir beleza nem sofisticação, à matemática mais não lhe resta do que ficar para tia.

 

Talvez seja de concluir, que não é assim que o amor se ensina. Que o amor é algo de belo que nos ilumina a alma. À nossa alma portuguesa, os números, as operações e as equações apresentam-se-nos como sendo coisas sem luz.

Vejamos um exemplo de que assim é. A seleção nacional de futebol participa num qualquer torneio internacional integrado num grupo conjuntamente com outras equipas. Qualificam-se para a fase seguinte as equipas que somem mais pontos. A seleção vence todos jogos, perfeito, não há cá contas, nas ruas e nos jornais fazem-se odes épicas à destreza e bravura dos jogadores e elogia-se liricamente a sagacidade e sabedoria do treinador.

 

Mas imaginemos agora, que a seleção não vence todos os jogos do grupo. Nesse caso, há que fazer contas. Há que somar os pontos necessários e esperar que as outras equipas não os somem. Quando assim acontece, qual é o título de cabeçalho de jornais e telejornais? Nós dizemos-vos: seleção obrigada a fazer contas, seleção tem de usar a máquina de calcular ou qualquer coisa desse género.

“Fazer contas” ou “usar a máquina de calcular” são das piores humilhações que podem acontecer a uma equipa de futebol nacional. As contas e a máquina de calcular é algo a evitar a todo custo.

Entre milhares de exemplos possíveis disto mesmo, atente-se no título de uma reportagem publicada no Diário de Notícias em 22 de junho de 2021: “Fernando Santos recusa fazer contas e lembra que Hungria está na luta”. 

Continuando no contexto futebolístico, é possível constatar que o desdém pela matemática é tão grande, que quando uma equipa já não tem qualquer hipótese de ser campeã mas o campeonato ainda não terminou, diz-se dessa equipa que já só tem hipóteses matemáticas de vencer. O que significa que “ter hipóteses matemáticas” é uma expressão sinónima a “não ter hipóteses nenhumas”.

Ponhamos um exemplo concreto e muito recorrente. É costume dizer-se por alturas de Natal, que “matematicamente" o Sporting ainda pode ser campeão”. “Matematicamente” é uma expressão verbal que todos os sportinguistas sabem interpretar corretamente, significa que o melhor é começar já a preparar a época seguinte, pois que da presente não levam nada e, afinal de contas, para o ano é que é.

 

Não cremos que haja uma outra língua, em que dizer-se que algo é matematicamente possível, seja o exato equivalente a dizer-se que o melhor é não se pensar mais nisso. O nosso desprezo pela matemática é tão intenso, que para nós portugueses, ser matematicamente possível, é o mesmo que “It’s not gonna happen”.

 

Mudemos de contexto, um casal de namorados, um grupo de amigos ou uma família vão jantar fora. Está tudo muito bem disposto, a comida é de se lhe tirar o chapéu e a pinga escorrega bem. Até que chega o hora de fazer as contas, o momento da dolorosa!

É um momento solene, põe-se um ar sério, olha-se para a fatura, somam-se as parcelas, vê-se se está tudo em ordem e resolve-se o assunto o mais rapidamente possível, como se os números tivessem peçonha.

Com a chegada da dolorosa, há sempre um leve mal-estar no ar. Estava tudo tão entretido, tudo tão alegre e lá nos tinham que vir com contas para arrefecer o ambiente. Ninguém ama a matemática.

 

Mesmo no contexto político, ninguém gosta de contas. Quando as notícias anunciam algo como “Portugueses vão ter de fazer contas”, sabemos imediatamente que as coisas vão descambar. Ou vão ser os impostos que vão aumentar, ou os ordenamos que vão diminuir, ou a crise que se vai instalar ou a inflação que vai disparar. Se nos dizem que vamos ter de fazer contas, isso nunca é um bom presságio para o que aí vem. Contas? Cruz, credo, vade retro Satanás.

 

Mesmo em situações em que se as contas fossem bem feitas todos teriam a ganhar, ninguém se decide a fazê-las corretamente. Olhemos para o atual conflito entre os sindicatos e o Ministério da Educação. É mais do que evidente que ninguém fez bem as contas. Basta consultarmos a imprensa dos últimos dias para verificar que uns falam de custos para o país de 1.300 milhões de euros de despesa permanente todos os anos, e outros falam de valores na ordem dos 300 milhões” de euros. Em que ficamos?

 

Se neste país alguém amasse a matemática, certamente que já teria aparecido um jornalista, um articulista ou um académico que tivesse pegado no lápis e feito as contas certas. Não deveria ser possível que, com os mesmos dados, haja uma diferença de 1000 milhões entre as contas de uns e as contas de outros.

 

É tão raro que em Portugal alguém acerte com as contas, que se porventura houver quem as faça bem, nos causa admiração. Quando se diz de fulano e sicrano que é de contas certas, expressa-se desse modo uma admiração ética pela dita pessoa. Quem é de contas certas, não é como os demais, destaca-se pela sua retitude e fibra moral, é alguém em quem nos podemos fiar.

Confiamos numa pessoa a quem descrevemos como sendo “de contas certas”, mas todavia, a relação que com ela estabelecemos é de respeitosa distância. Admiramos quem é “de contas certas”, respeitamos a sua seriedade, mas sabemos que é alguém mais reto e austero do que a maioria de nós. No fundo, não é alguém com quem gostássemos de ir à bola ou de ir jantar fora. Pressentimos nas contas certas uma frieza e uma distância.

 

Por tudo o aqui fica dito, a conclusão é a de que bem podem vir apresentar-nos a matemática como sendo útil, gira e divertida ou como sendo de respeito, rigorosa e confiável, a nós portugueses dá-nos no mesmo, não lhe vemos a beleza e portanto não a amamos e pronto, toca a andar.

A alma portuguesa não é dada aos números, às operações e às equações da forma como nos as apresentam, ao que somos dados é à beleza das exaltações e depressões poéticas. Qual matemática, qual carapuça, do que gostamos é da poesia.

 

Tanto nos faz que a poesia seja erudita e de alto calibre literário, como seja popular e cantada num fado numa taberna. Do que gostamos é de sentir a paixão das palavras e não os secos rigores dos números.

 

À nossa alma nada nos dizem os gélidos resultados exatos calculados à milésima, preferimos antes o calor das grandes incertitudes poéticas. A incertitude de não ter a certeza se tu és a alegria ou és a tristeza. A incertitude de saber lá eu o que desejei. A incertitude de um coração que conte quantas vezes já bateu para nada. A incertitude de não saber se vale pena a espera, pois que a noite vinha fria e o meu amor tardava.

A poesia diz-nos coisas e conta-nos histórias. Faz-nos perguntas para as quais não há resposta, só há incertitudes. É essa a sua beleza. A matemática enche-nos os ouvidos de perguntas e quer respostas exatas, o que só chateia e arrelia.

 

Tentámos mostrar um pouco da beleza da matemática aos nossos alunos. A beleza que se esconde atrás de roupagens feitas de manuais escolares pouco imaginativos, de velhas sebentas, de exercícios estéreis, de problemas inúteis e de secas folhas Excel.

Juntámos poesia à matemática e a esse guião demos-lhe o nome de “Desmatemática”.

 Guião de aprendizagem "Desmatemática"

https://drive.google.com/file/d/1ZR8r6W4o_gh3RTTWQVV7AJzmjZRWSPe2/view?usp=sharing 

Ficha de exploração "Desmatemática"

https://drive.google.com/file/d/1NtON3lTyqw9pZfLMt--qVlWr8i67PPjm/view?usp=sharing 



 

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