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A que horas passa o comboio? Será este um país de atrasados? Estarão os professores escravizados? Amanhã vai chover? Nós temos as respostas!

 


Para nossa eterna desgraça, nós, quem vos escreve, fomos educados para sermos pontuais, para sermos escravos das horas. Assim sendo, quando combinamos algo, digamos para as 15 horas, faça chuva ou faça sol, aparecemos impreterivelmente à hora marcada.

Numa estimativa muito por baixo, em 99% das vezes que combinamos algo para as 15h em ponto, é certo que só aparecerá alguém, para além de nós próprios, lá por volta das três e vinte ou três e vinte e cinco, na melhor das hipóteses.

Caso a combinação tenha sido para as 9h, para as 12h ou para as 21h, o resultado é o mesmo, seja verão seja inverno, vamos secar. É assim desde sempre. 

Apesar de termos décadas de experiência em situações das do género acima descrito, nos mais diversos contextos e circunstâncias, ainda assim, insistimos quixotescamente em chegar a horas, mesmo sabendo de antemão que de nada nos vai valer, pois iremos inevitavelmente ficar de seca por uma meia hora ou mais.

Em boa verdade, nós é que estamos errados, pois devido a um clamoroso equívoco, fomos educados para ser escravos dos ponteiros do relógio. Já a maioria dos nossos compatriotas foi educada para tratar dos seus afazeres com a necessária calma e sem quaisquer pressa. Foi também educada para chegar a qualquer sítio à hora que muito bem lhe aprouver, pouco se importando que haja quem esteja a apanhar uma valente seca.

 

O não se deixar escravizar pelos ponteiros do relógio, é uma característica nacional que não se limita às relações entre indivíduos, é algo que se estende à nossa vida coletiva. 


Os comboios da CP, quando chegam, pois nem sempre é certo que efetivamente cheguem, nunca o fazem à hora prevista. A hora prevista é meramente indicativa, dá-nos umas luzes, mas não nos ilumina.

Os aviões da TAP voam livremente pelos ares e ninguém se preocupa minimamente com os horários de partida e de chegada. Sabe-se que houve um louvável esforço para que existissem horários, que podem até ser consultados on-line, querer ainda que sejam cumpridos é já pedir muito. 

Os autocarros da Carris circulam alegremente pela cidade, sem que haja qualquer hipótese de descortinar se o próximo passa daqui a uns poucos minutos, ou daqui a uma boa meia-hora ou mais. Quando vêm, quando vão, são questões já de âmbito filosófico com as quais não vale a pena maçarmo-nos.

 

Seja numa escola, numa empresa ou num condomínio, as reuniões começam sempre muito para lá da hora marcada e, se por acaso possuem hora para terminar, é certo e sabido que não é para se cumprir.

 

Em resumo, a não submissão aos ponteiros do relógio, é algo que está profundamente enraizado na alma nacional. É algo que, tivessem a UNESCO e as nossas instituições culturais mais audácia, deveria ser elevado à categoria de património imaterial da humanidade, à semelhança do que aconteceu, por exemplo, com o Cante Alentejano.



Enfim, se não da humanidade, mais que não seja, pelo menos que os atrasos fossem elevados à categoria de património imaterial nacional. Era mais que merecido. Se as alheiras de Mirandela o são, por qual razão igual distinção não é atribuída aos nossos ancestrais atrasos? É uma injustiça que urge corrigir. Aqui fica o alerta para quem de direito.

 

Como qualquer um de nós diariamente pode constatar, todo o país se atrasa e ninguém se rala muito com isso. Depressa e bem não há quem, diz, e com razão, o nosso bom povo.

Não é assim pois de estranhar, que ouçamos os noticiários e que com recorrente frequência, descubramos que somos um país atrasado quando comparado com os restantes países da União Europeia e da OCDE.


Somos atrasados em praticamente todos os domínios. Mas o que nos importa isso? Temos ou não temos o melhor jogador do mundo? E o Papa? Vem ou não vem Portugal? Não julguem os países adiantados, que lá por não serem atrasados, se ficam a rir de nós! Ai isso não.

Quem é que tem sardinhas assadas na brasa? E papas de sarrabulho? E bom tempo? Quem é? Não é a Suécia de certeza absoluta. Nem a Alemanha. Nem a Holanda. Isso são terras em que só faz briol, cruz credo. Viva Por-tu-gal, Por-tu-gal, Por-tu-gal…

 

É certo que se ganhássemos mais uns cobres, tipo os que ganham os alemães, os suecos, os holandeses e todos os outros que não são atrasados, era capaz de nos dar jeito. Isso é certo. Mas, a bem dizer, o dinheiro não é tudo, e o que é preciso é que haja saúde. Quanto ao resto, os outros que vão andando, que nós depois vamos lá ter.

 

Em síntese, genericamente, os portugueses pouco ou nada se angustiam com atrasos, nem com os seus, nem com os do país. Todavia, há uma excepção a este regra. Existe um local em que os atrasos são uma constante fonte de grande preocupação. Que local será esse? Qual será, qual será? É a escola. Não se estava mesmo a adivinhar?

 

Claro que não falamos dos atrasos relativos às horas de entrada e saída, que isso na escola, é como em todo lado. Há sempre engarrafamentos, imponderáveis, greves dos transportes, sonolências súbitas, uma indisposição, um cano furado, uma urgência e todos os demais cataclismos impeditivos que em Portugal se chegue a horas onde quer que seja. Falamos de um outro tipo de atrasos, os relacionados com a matéria.

 

Outrora, há muitos anos, quando éramos jovens alunos, já os nossos professores diziam que estavam atrasados com a matéria. Muitos anos depois, continuamos a ouvir professores a dizerem que estão atrasados na matéria.

Qual matéria? Apetece-nos perguntar. Mas não vale a pena, porque já sabemos a resposta: a matéria que está nos livros, mais concretamente, nos manuais escolares. O atraso de que se fala é relativo à sequência estabelecida pelo manual. Se o manual diz que em março já se “devia” ir na página 96 e ainda só se vai na página 84, há atraso.


Nós somos contra os atrasos.

 

Numa qualquer editora, alguém decidiu sequenciar um manual escolar de determinada forma. Escolheu as matérias a trabalhar em setembro, as a trabalhar em janeiro e as a trabalhar em junho. Escusado será dizer, que escolheu também as de todos os restantes meses. Nalguns casos, inclusivamente, as a trabalhar em julho e em agosto, pois que há manuais que acompanham com um caderno de atividades para as férias de verão.

 

Alguém decidiu. Foi um professor? Talvez. Um editor? Provavelmente. Terá sido a equipa de relações públicas? Não seria de estranhar. O setor da contabilidade? Certamente que teve uma palavra a dizer. O departamento de publicidade? Pois claro que sim. O dono da editora? A sua opinião conta, como é evidente.

 

A escolha foi feita porque lhes pareceu bem, porque lhes dá jeito, porque é mais lucrativo ou por qualquer outro motivo. Contudo, a pergunta é a seguinte: por que razão milhares de professores se deixam escravizar pelos ponteiros de um relógio que alguém, numa qualquer editora, pôs em andamento pela hora que mais lhe convinha? Porquê?

 

A sequência cronológica das matérias estabelecida pelos manuais, é uma, entre muitas outras possíveis. Tanto assim é, que basta pegar em meia dúzia de manuais diferentes sobre o mesmo assunto, para perceber que cada editora estabelece sequências distintas das restantes.

Os manuais tentam forçar a que os outros acertem o relógio pela sua hora. Fazem acreditar a quem não o faz que está atrasado. Porém, o ritmo e a sequência das aprendizagens varia muito de turma para turma e até de aluno para aluno, consequentemente, que sentido faz andarem todos escravizados pelo bater dos ponteiros de um mesmo relógio a que alguém deu corda? Nenhum.


Amanhã não vai chover, mas há greve dos comboios e, como de costume, vai haver atrasos.

 


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