Há algo que
nos intriga em Portugal: as mulheres. Ou melhor, não são propriamente as
mulheres o que nos intriga, mas sim a representação que delas é feita na
literatura, no cinema, na ficção televisiva e, sobretudo, na publicidade.
Em qualquer
país do mundo, a publicidade é sempre o melhor sintoma de como uma sociedade
percepciona um determinado grupo social.
E como
representa a publicidade a mulher portuguesa? Nós fizemos um aprofundado estudo
sobre este assunto. A nossa metodologia foi a seguinte, num domingo à tarde,
após um copioso repasto, deitámo-nos no sofá a ver televisão e fomos fazendo zapping
entre a RTP 1, a SIC e a TVI.
A
programação dominical é praticamente igual nos três canais, só variam os
apresentadores. Os momentos mais interessantes de toda a emissão, foram
precisamente os intervalos para publicidade, que são abundantes e duram em
média para cima de um quarto de hora cada. Foi uma tarde bem passada. Valeu a
pena.
Ao
analisarmos cientificamente os anúncios, verificamos que neles, a mulher
portuguesa preocupa-se fundamentalmente com as compras do supermercado. São
dezenas os anúncios a publicitar produtos alimentícios e detergentes aos
melhores preços.
Verificamos
igualmente que há uns lampejos de modernidade nesses anúncios. Com efeito, ao
contrário do que acontecia antigamente, já não é só à mulher a quem compete
fazer as compras domésticas, muitas vezes aparece um marido, um namorado ou um companheiro
que está encarregue dessa tarefa.
Na
publicidade, o homem que encarna o marido, namorado ou companheiro, é
normalmente um personagem com um ar bem-disposto e pachorrento. Alguém que
tinha planeado passar um agradável fim-de-semana a esponjar-se no sofá ou
escondido a ver sites mais atrevidos na internet, mas que foi subitamente
requisitado para ajudar nas tarefas domésticas, ou seja, para ir às compras ao
supermercado.
Vindo do
supermercado, quando chega ao lar com as compras já feitas, o marido, o
namorado ou o companheiro tem inevitavelmente um ar muito satisfeito, um ar de
“missão cumprida”.
Claro que a
esposa, namorada ou companheira, como boa e responsável dona de casa que é, questiona-o
se ele foi efetivamente ao supermercado certo, ou seja, ao que faz as melhores
promoções, e, se porventura, não se esqueceu de comprar isto ou aquilo. Faz
bem, pois já se sabe que os homens são muito distraídos. Claro que ele foi
sempre ao sítio certo e nunca se esqueceu de nada, é um bom menino.
O anúncio
termina quase invariavelmente com um sorriso orgulhoso da esposa, namorada ou
companheira, pois ficou assim provado que ela é uma mulher moderna. Uma mulher que
soube educar o seu “mais-que-tudo” para cumprir com êxito, a mais alta e
complexas das tarefas: ir às compras.
A outra
grande questão que nos anúncios parece preocupar as mulheres portuguesas, é as
tarifas dos pacotes de telecomunicações. A sermos justos, esta parece ser uma
questão que é transversal a toda a família. Verifica-se que esta é uma das
questões, que mais divide as famílias portuguesas.
Há
inclusivamente anúncios de diferentes operadoras de telecomunicação, onde é
subliminarmente sugerido que esta questão pode levar a conflitos e a súbitas
roturas entre casais que, de resto, são amorosos.
Assumindo o
seu papel tradicional de conciliadora e pacificadora do lar, não raras vezes é
a mulher que toma as rédeas da situação e consegue que tudo acabe em bem,
propondo a subscrição de um pacote de telecomunicações que agrada
simultaneamente ao seu homem, aos filhos e até aos avós.
Também neste
caso, como nos dos supermercados, há lampejos de modernidade, pois o pacote
escolhido, agrada-lhe também a ela. No passado, a mulher portuguesa sacrificava
os seus desejos em função dos outros, atualmente sabe satisfazer os desejos dos
outros sem que tenha de anular os seus, sabe que pacote escolher.
Continuando
a nossa análise da publicidade, a outra grande preocupação da mulher portuguesa
nos anúncios é com a aquisição de pensos higiénicos. A quantidade de anúncios
dedicados a este artigo de higiene não é tão grande como os dos supermercados
ou os das telecomunicações, mas, ainda assim, é em número bastante
considerável. O que pensar disso? Não sabemos.
O que
sabemos e nos espanta, é que em Portugal e em Espanha as mulheres sejam
representadas de modos tão diferentes. Não é estranho que nas sociedades mais
liberais e há muito democráticas, como por exemplo a francesa, a inglesa, a
holandesa ou a sueca, as mulheres sejam representadas de formas diferentes da
portuguesa, contudo, Portugal e Espanha, para além de desde sempre viverem lado
a lado, têm durante o século XX uma história político-social semelhante.
É por isso
tanto mais estranho, que a iconografia associada à mulher portuguesa e a
associada à mulher espanhola sejam desde há muito tão distintas.
Vejamos um
exemplo de uma imagem icónica associada à mulher espanhola. Para esse efeito,
usemos um cartaz publicitário já antigo, o da Feira de Sevilha de 1957.
Como podemos
verificar, a mulher espanhola é representada como sendo dona do seu destino,
desafiante e exuberante. Poderíamos ter escolhido um cartaz de um qualquer
outro ano ou evento, que o resultado seria o mesmo.
Mas vejamos
agora uma célebre fotografia, exatamente do mesmo ano, com representações,
também icónicas, da mulher portuguesa. Esta fotografia foi tirada por Artur
Pastor e faz parte do álbum “Nazaré”, que foi oferecido à Rainha Isabel II
aquando da sua visita a Portugal em 1957.
No caso
português, as mulheres são representadas como seres desamparados, cujo fado e
destino consiste em aguardar com expetativa e receio, o regresso dos seus homens
do mar.
Também
relativamente às representações das mulheres portuguesas, poderíamos ter
recorrido a outras fotos, cartazes ou datas, que o resultado não teria sido
muito diferente.
Como
dissemos no início deste texto, as representações das mulheres, sobretudo as
publicitárias, são um indício de como a sociedade, mesmo que de forma
inconsciente, as percepciona.
Como em
quase tudo na vida, também estas percepções resultam da educação.
Avancemos
para a década seguinte, para os anos 60. Em 1963 é inaugurada em Málaga, no sul
de Espanha, uma escola exclusivamente para raparigas que impressionou a Europa
inteira. Recorde-se que nesses anos, Espanha vivia ainda num regime ditatorial.
Em nítido contraste com o conservadorismo do regime, a escola era de uma grande
modernidade, não só em termos pedagógicos, como também arquitetónicos.
O edifício
tinha amplos e airosos terraços e galerias, a vegetação estava integrada no
conjunto, possuía ainda deliciosas vistas sobre o Mediterrâneo e inclusivamente
a possibilidade de as aulas serem ao ar livre.
A escola é
uma evidência feita de pedra, tijolo e concreto, de que apesar de Espanha viver
nessa época debaixo do regime franquista, ainda assim, a concepção que se tinha
da educação feminina era suficientemente moderna para contemplar espaços
amplos, vistas largas e ar livre.
Se olharmos
para uma fotografia de uma escola feminina portuguesa da mesma época,
percebemos imediatamente a diferença. A concepção aqui subjacente relativamente
à educação feminina, nada tem que ver com vistas largas, amplos espaços e ar
livre. Muito pelo contrário, o que se esperava das meninas era que estivessem
sentadas, sossegadinhas e que sorrissem para a fotografia.
Todas (ou
quase) vestiam uma bata branca para que não sujassem a roupa e estivessem
sempre asseadas e bem arranjadas.
Posto isto,
o que dizemos é o seguinte: sendo a larguíssima maioria da classe docente
portuguesa constituída por mulheres, são estas quem detém o poder para fazer
com que a sociedade as percepcione de outro modo, que não como as responsáveis
pelas compras da casa, as conciliadoras dos desentendimentos relativos às
telecomunicações e as consumidoras de pensos higiénicos.
Comentários
Enviar um comentário