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Não vale a pena fazer um 31, que vou só ali ao café e já venho…

 


É costume desvalorizar-se algo que se ouve dizendo que isso são conversas de café. Mas será que as conversas de café são assim tão pouco importantes? Nós cremos exatamente no contrário. Há poucas conversas mais decisivas na vida, do que aquelas que se fazem no café.

 

Por mais vulgar que nos dias de hoje a situação seja, ainda não nos conseguimos habituar. Vamos a um café, a um sábado à tarde, e em muitas das mesas há casais, famílias ou grupos de amigos em que todos, cada um por si, estão longo tempo a olhar para o seu telemóvel, ignorando totalmente quem os rodeia.

 

Inicialmente, há uns bons anos, quando esta situação se começou a generalizar, era com curiosidade que olhávamos para os outros e nos interrogávamos sobre o que seria assim tão interessante para os prender completamente ao ecrã.

Depois, com o passar do tempo, descobrimos que, na maior parte dos casos, ninguém estava a ver nada de particularmente interessante, estavam simplesmente presos numa espécie de “scroll” infinito do qual pareciam não querer libertar-se.

 

Um dia, há uns poucos anos, entrámos num café acabado de inaugurar. Estava decorado com gosto, o pessoal era simpático e prestável, e o ambiente era bastante agradável. Numa das paredes tinha um placar com a seguinte informação: 

"Não temos Wi-Fi, querem falar, conversem entre vós."

Como certamente já adivinharam, esse café já fechou as portas. Após um certo sucesso inicial, a clientela começou a pedir insistentemente ao proprietário que instalasse uma rede de Wi-Fi, pedido esse que era continuamente recusado.

Claro que a clientela poderia usar a sua própria rede de dados móveis e continuar a frequentar o café, mas para quê fazê-lo, se ali mais baixo, havia um outro café com Wi-Fi gratuito para todos?

 

Talvez um dos maiores sintomas da decadência da civilização europeia, seja o facto de já serem poucos os que fazem conversa de café. 

George Steiner, provavelmente o maior estudioso de sempre da cultura ocidental, escreveu assim: 

“A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa, frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter­-se-á um dos marcadores essenciais da ideia de Europa”

 

Com efeito, certas conversas de café foram tão importantes que moldaram o destino de um continente inteiro e de milhões de pessoas. Pense-se no Café Central em Viena. Foi fundado em 1860 e ainda hoje existe, tendo sido o pouso de homens como Freud, Trostsky e…Hitler. Se lermos a biografia de qualquer um destes três homens, ficamos a saber que muitas das suas opiniões e convicções começaram precisamente a tomar forma em conversas no Café Central.


Se estudarmos a história dos parisienses Café de Flore ou Les Deus Magots, descobrimos imediatamente que estes foram mais importantes para a literatura e para as artes do que duas ou três academias juntas.

Situam-se no bairro de Saint-Germain-des-Prés e não ficam muito distantes um do outro. Ambos foram frequentados por gente muito importante como por exemplo Albert Camus, Pablo Picasso, Ernest Hemingway, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.

Sem as conversas de café em Saint-Germain-des-Prés, nunca teria existido o existencialismo, por consequência, jamais teríamos lido ou ouvido frases como por exemplo “O homem é a única criatura que se recusa a ser quem é” ou “O encanto é uma maneira de obter como resposta um sim sem ter nunca ter feito nenhuma pergunta” ou ainda “Posso não ter certeza do que realmente me interessa, mas tenho certeza absoluta do que não me interessa”.


Também em Portugal há muitas conversas de café que marcaram a história. Foi no Café Chave D’Ouro em Lisboa, no Rossio, que a 10 de maio de 1958, o General Humberto Delgado proferiu a frase que o celebrizou “Obviamente demito-o”. Foi a resposta que deu quando lhe perguntaram o que faria a Salazar caso fosse eleito presidente da república. 

Seguir-se-iam meses a ferro e fogo na política portuguesa.

 

Foi de um outro café do Rossio, o Gelo, que António Costa e Manuel Buiça saíram, a 1 de fevereiro de 1908, rumo ao Terreiro do Paço, para matar o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro, D. Luís Filipe.

 

Mas não é só em Lisboa que há cafés históricos, há-os por todo o país. Se consultarem o site que abaixo vos deixamos, poderão saber quais são esses cafés, seja em Braga, em Guimarães, no Porto, em Coimbra, em Estremoz ou em Loulé.

https://www.cafeshistoricos.pt/cafes

 

Já agora, deixamos-vos um outro site, este com os cafés históricos da Europa inteira, muito deles em Portugal:

https://historiccafesroute.com/historic-cafes/


Terminamos como uma história passada há décadas na Brasileira do Chiado. 

Por vezes as conversas de café azedam e, nessa época, os cavalheiros gostavam de se passear de bengala. Quando se chegava a vias de facto, era tudo resolvido à bengalada.

Foi numa dessas cenas que nasceu o famoso “Fado do 31”, que rezava assim: “À porta da Brasileira/Dois tipos encontram dois/Juntam-se os quatro e depois/Lá começa a cavaqueira/Agrava-se a chinfrineira/Vai aumentando o zum-zum/Vem bomba, rebenta, pum/Depois mais tarde vereis/24, 26, 29 e 31”.

Aqui fica o Fado 31 na clássica interpretação do Rodrigo:



 



 

 

 


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