Comemora-se hoje
o Dia Mundial do Livro. Levar os alunos a ler autonomamente, é um dos mais
nobres desígnios da escola. Sendo que esse princípio está consagrado nos
currículos e é também um dos grandes objetivos do Plano Nacional de Leitura
(PNL). Arriscamo-nos mesmo a dizer, que ler autonomamente, é uma das coisas
mais valiosas que alguma vez podemos ter na vida.
Não valerá a pena salientar o quão valioso é saber ler autonomamente coisas úteis e práticas, como contratos bancários, manuais de instruções, o código da estrada ou bulas de medicamentos, acerca disso não há quaisquer dúvidas. Vale a pena salientar, isso sim, o quão valioso é ler autonomamente um livro.
Não nos
referimos a livros técnicos ou de estudo. A leitura autónoma desse tipo de
livros será importante por razões profissionais ou académicas, mas não é
exatamente esse o ponto que queremos salientar. O que queremos salientar é a
leitura autónoma de obras literárias: de livros de poesia, dos que contam
histórias de encantar, dos que inventam, dos que filosofam, dos que viajam no
tempo e no espaço, dos que narram amores e desamores, dos que relatam aventuras
e desventuras, dos que nos dão alegrias e tristezas e de todos os outros em que
se escreve sobre o muito que há na vida.
Aprender a ler autonomamente obras literárias, sendo que estas podem ir desde as infantis histórias da carochinha e do tempo em que os animais falavam, até aos milhares de páginas dos reflexivos e melancólicos sete volumes de “À la recherche du temps perdu” de Marcel Proust, é literalmente aprender a viver.
Repetimo-nos
para que não restem dúvidas: aprender a ler autonomamente obras literárias, é
nem mais nem menos o mesmo, que aprender literalmente a viver.
Uma das mais aborrecidas e inúteis coisas que nos podem fazer, sejamos nós crianças ou adultos, é dizerem-nos qual é a moral da história ou o significado de um livro. É como se o livro antes de lido já estivesse lido.
Há quem seja
muito bem intencionado e didaticamente nos diga qual é a lição a retirar da
história do capuchinho vermelho ou das parábolas de Franz Kafka. Há muito quem
queira exercer uma “tutoria” sobre o significado das nossas leituras, não
acreditando que nós próprios autonomamente consigamos vislumbrar um sentido no
que lemos. Contudo, essa espécie de tutoria para pouco ou nada serve e só
aborrece.
A “tutoria” literária retira-nos o prazer de sermos nós próprios a descobrir um caminho no que lemos. Nós não queremos que nos digam qual é a moral da história nem qual o significado de um livro, queremos ser nós a descobri-lo. Em cada história há mil sentidos e mil morais diferentes, qual dessas mil nós lemos, é um assunto a resolver a dois, ou seja, entre nós e o autor, e basta.
Quando nos servem à força o significado ou a moral da história, é como se um outro tivesse lido por nós o que lemos. Ler é também interpretar, sendo um outro a dar-nos a interpretação, é como se já nem lêssemos, como se alguém lesse antes por nós.
É certo que os
outros podem recomendar-nos a leitura de um livro e dar-nos contextos e
informações sobre o mesmo. Podem inclusivamente dar-nos opiniões e fazer
considerações, tudo isso é bom e está muito certo. O que não podem, ou pelo
menos não devem, é forçar-nos a ler segundo tal ou tal interpretação, isso é
que não.
Vamos a um
exemplo. Qual é a moral da história que nos querem forçar a adoptar na fábula
“A cigarra e a formiga”? A moral habitual é que durante o verão, enquanto a
cigarra cantava, a formiga trabalhava, o esforço da formiga foi compensado e a
cigarra, que não se preparou para o inverno, ficou sem ter o que comer.
Todavia, há outras morais que se podem ler nessa fábula. Por exemplo, a moral de que a formiga é uma cinzentona e que só sabe trabalhar, uma “workaholic”. Ainda para mais, é egoísta, sovina e nada caridosa. Se tivesse o mínimo de coração, podia muito bem partilhar alguma da sua comida e a casa com a cigarra, pois que para mais, esta parece ser divertida, bem disposta e até sabe cantar.
Haverá alguém no
seu perfeito juízo, que prefira a formiga à cigarra? A formiga é apenas
trabalhadeira, já cigarra dá-nos música. Quem é que não gosta que lhe deem música? Nós por cá gostamos, e então se for inverno ainda mais, até nos aquece
o corpo e a alma. Digam lá se é assim ou não é? Pois se é, não nos venham para
cá com moralismos.
Um outro
exemplo, o capuchinho vermelho. A habitual moral da história é que as meninas
devem ser obedientes, pois caso contrário, ainda dão de caras com um lobo mau.
Pois sim, é isso mesmo, não se está mesmo a ver?
Ponham-se lá a
dizer essas coisas às raparigas e depois admirem-se que elas quando crescerem
fiquem para tias, acabem a tomar antidepressivos e a dizer que ninguém as ama.
Façam isso, enfiem-lhes lá com essa moral da história, que logo veem o
resultado. Quem vos avisa, vosso amigo é.
Em síntese,
aquilo de que todos deveríamos estar conscientes, é que a grande moral que
podemos retirar da leitura de qualquer ficção, é uma lição de vida. É mesmo uma
das mais importantes lições que podemos aprender na vida, ou seja, que ler é
viver, e que uma vida boa, saudável e feliz, é aquela em que vivemos por nós
próprios o que temos a viver.
Através da
leitura percorremos lugares familiares mas também estranhos mundos. Através da
leitura reconhecemos pessoas que se nos assemelham e vivem como nós mas também
convivemos com gentes com diferentes hábitos e costumes. Através da leitura
criamos intimidade com personagens com as quais sentimos afinidades mas também com
outros absolutamente invulgares.
Se quisermos
fazer uma súmula, diríamos que é através da leitura de histórias e ficções que
descobrimos o mundo e os outros, e é também através da leitura que reconhecemos
quem somos e simultaneamente os estranhos que existem em nós, aqueles a quem
poderíamos chamar os nossos heterónimos.
Em resumo, é
através da leitura que aprendemos a viver a vida em toda a sua beleza,
estranheza e multiplicidade.
Quem, ainda que
com boas e didáticas intenções, força a que se tenha uma determinada
interpretação ou se retire uma moral pré-preparada de uma história, só está a
deseducar. Está a fazer com que se leia, interprete, se pense e viva pela
cabeça dos outros, ou seja, que não se aprenda a ser autónomo e a escolher o
seu próprio caminho.
Nós pedimos aos
alunos que lessem um “texto” de Ana Hatherly. Relembre-se que parte da obra
artística de Ana Hatherly é constituída por “textos” escritos numa escrita por
ela própria inventada, e que nasce do seu desejo profundo por se entregar à
inteligência da mão. É uma escrita gestual que se inscreve e se escreve na
superfície do papel e que se situa algures na transição entre o legível e o
ilegível, e entre visível e invisível.
A obra que
escolhemos para que os alunos lessem, foi esta:
Cada um dos alunos fez autonomamente a sua leitura e cada um deles leu uma coisa diferente. Um deles leu nesta obra de Ana Hatherly o seguinte: “Um cão hexagonal e um gato pentagonal estão à janela numa casa no Porto”.
A nós pareceu-nos que leu e interpretou perfeitamente o “texto”, mas quem sabe, talvez os nossos leitores tenham uma leitura completamente diferente desta obra. De uma coisa podem estar certos, nós não vos vamos fazer tutoria nenhuma, nem dizer-vos qual o sentido ou a moral da história deste “texto”, cada um que a procure autonomamente, que é assim é que se aprende a ler.
Não precisam de
ter pressa, pois este “texto” de Ana Hatherly parece-nos ser um daqueles que
jamais se deixam ler de uma vez para sempre...
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