Quem não se
lembra dos tempos de criança na escola primária, em que havia certos e errados
marcados a esferográfica vermelha no nosso manual escolar ou no caderno diário?
Que tempos esses, em que fazíamos um qualquer exercício, as tabuadas ou uma
redação e uma vez terminada a tarefa, a professora, pois que normalmente era
uma professora, nos marcava um imenso certo ou um lastimável errado.
O certo era um
grande e exuberante “c” minúsculo desenhado a letra manuscrita. A extremidade
superior do “c” era sofisticada, elegante e encaracolada. No certo, a
extremidade inferior do “c”, ao invés de terminar onde era suposto terminar,
ascendia velozmente, a uma velocidade quase supersónica, e prolongava-se por
ali afora, parecendo ir direita ao cosmos infinito.
Não raras vezes,
o prolongamento da extremidade inferior do “c”, esticava-se mesmo até à ponta
do caderno ou do manual, assinalando dessa forma, o orgulho e a esfuziante
satisfação da professora primária por o seu aluno, ou aluna claro está, ter
acertado em cheio na resposta.
Um certo nem sempre estava completamente certo. Por vezes, havia uma leve incorreção ou algo que estava incompleto. Nesses casos, o “c” era mais tímido. Não tinha a mesma elegância e exuberância. Nem sequer se encaracolava tanto, nem era tão expansivo.
Era um certo,
isso é certo, mas era um certo atravessado por um ou dois traços, mais ou menos
perpendiculares, na sua extremidade inferior. Era um certo que nos indicava,
que tinha sido por pouco, que tínhamos escapado a ter um errado.
Ainda assim,
tinha uma certa magia, esse certo traçado ou duplamente traçado. Era como se os
traços, aliviados nos segredassem ao ouvido: "bom, desta vez tiveste sorte, lá
te conseguiste safar, respira fundo que o pior já passou".
Com o passar dos
tempos, os certos passaram a ser menos eloquentes. Uns tornaram-se num
burocrático e desengraçado “visto”. Outros, apesar de permanecerem em forma de
“c”, passaram a ser marcados com uma insípida esferográfica verde, o que não é
de todo em todo o mesmo, que serem marcados num sanguíneo e aguerrido vermelho.
Hoje em dia,
como quase ninguém usa cadernos diários e os manuais escolares têm de ser
devolvidos intactos no final do ano letivo para posterior reutilização, talvez
já não haja assim tantas professoras, ou professores já se vê, que como
antigamente, desenhem um expressivo e vistoso certo a esferográfica vermelha
quando um aluno concluiu acertadamente uma tarefa.
Menos haverá
ainda, quem com a mesma esferográfica vermelha, trace um feroz X para assinalar
que a tarefa está errada. Neste caso, o motivo não se prende apenas com a quase
inexistência de cadernos diários e com os manuais escolares terem de ser
devolvidos intactos para serem reutilizados, prende-se também com o não se
querer traumatizar os alunos.
Com efeito, são
muito os estudos científico-pedagógicos que nos confirmam, que um X a vermelho
é uma coisa aterradora. É algo que traumatiza e destrói à autoestima dos
alunos para o resto das suas vidas. Coisa que, como é evidente, ninguém quer
fazer.
Em síntese, o
tempo dos certos e errados marcados a esferográfica vermelha já quase terminou.
Resiste ainda numa ou noutra circunstância, mas em nítida agonia. Nos tempos
que correm, ou não há certos e errados marcados nem no manual nem no caderno
diário, ou quando os há, são uma coisa muito desenxabida, sem exuberância nem
elegância absolutamente nenhumas.
Veja-se o
exemplo da imagem abaixo. Será isto um certo que encha de júbilo o coração de
uma criança? Claro que não. Primeiro, é mais um “visto” de que um certo.
Depois, um certo num verde deslavado, nem é um certo nem é nada. E o errado?
Mas este medroso X assusta alguém? Ninguém, cá está.
Como se tudo
isso não bastasse, em vez de esferográficas, temos lápis de cor! Lápis de cor
para marcar certos e errados?! Dá vontade de chorar. Mas que mundo é este?
Quem viveu nos
tempos dos certos e errados marcados a esferográfica vermelha, teve muitas
dificuldades em livrar-se deles. Por um lado, os certos eram uma coisa
viciante, queria-se sempre mais e mais. Por outro lado, os errados eram uma
coisa frustrante e castrante, fugia-se deles como o diabo da cruz, pois que nos
deixavam envergonhados e acabrunhados.
Quem sentiu a
adrenalina e o prazer de ver a sua professora primária a pousar assertivamente
a esferográfica vermelha no papel e seguidamente, numa súbita espiral de dentro
para fora, desenhar um imenso “c” encaracolado, que requintadamente ia
descendo, para no seu movimento final repentinamente se lançar numa linha
diagonal ascendente, esses que o sentiram, jamais o esquecerão.
A adrenalina e o
intenso prazer que sentíamos nesses momentos em que tínhamos um certo, eram
como se uma substância aditiva nos corresse nas veias. Excitava-nos,
fazendo-nos querer brilhar e ser os melhores da turma de modo a que professora
nos marcasse mais certos.
Já um errado
funcionava exatamente de forma oposta, ou seja, como uma substância depressora.
Fazia com que quiséssemos apenas ficar no nosso canto, receosos, sem que
ninguém reparasse em nós.
Mas falemos
agora da China que, como é bom de se ver, era um assunto que vinha mesmo a
propósito. Falemos mais especificamente de Mao Tsè-Tung.
Mao Tsé-Tung, o
histórico líder da China, antes de o ser, estudou no magistério primário tendo
seguidamente trabalhado numa escola na importante cidade de Changsha, capital
da província de Hunan.
Talvez por ser
um homem e um professor desses tempos idos, Mao Tsé-Tung estava perfeitamente
convencido que sabia o que estava certo e estava errado. Uma vez tendo chegado
a líder da China, marcava um “c” ou um “X” a vermelho sem a menor das
hesitações. Só que enquanto líder da mais populosa nação à face da terra, não
os marcava num manual escolar ou num caderno diário, marcava-os num imenso país
com milhões e milhões de habitantes.
Em 1958 a China
decidiu dar um grande salto em frente. A ideia era implementar um plano que em
poucos anos transformasse o país, de modo a que este deixasse de ser
maioritariamente rural e se tornasse numa grande potência industrial. Mao
Tsé-Tung sabia que era esse o caminho certo.
Para iniciar
esse ambicioso plano, o Presidente Mao Tsé-Tung decidiu que se deveria acabar
com o que estava errado no país. Decidiu que se começaria por erradicar quatro
pragas: as moscas, os mosquitos, as ratazanas e os pardais.
Acerca das
moscas, mosquitos e ratazanas, não vamos falar. Embora todos elas sejam
criaturas de Deus, ainda assim, hão de os nossos leitores concordar que é uma
bicheza desagradável, pouco asseada e que arrelia.
Falemos tão só
de pardais. Nas contas de Mao Tsé-Tung, os pardais eram uma praga porque comiam
uma parte significativa das colheitas. A situação foi explicada à população
como se de um problema matemático da escola primária se tratasse, ou seja, se
cada pardal comer por dia umas tantas gramas de cereais, tantos milhões de
pardais comerão num ano que quantidade? Façam favor de fazer as contas e
apresentar os cálculos.
E assim foi, as
populações desataram a fazer cálculos e em poucos meses as contas bateram
certo, bilhiões de pardais foram exterminados. O pardal ficou praticamente à
beira da extinção na China, pois como bons alunos, todos queriam agradar ao
Professor Mao e que este lhes marcasse um enorme certo a vermelho.
Contudo, do que
se esqueceram, foi que os pardais se alimentam de gafanhotos. Estando os
gafanhotos livres dos pardais, reproduziram-se a uma velocidade furiosa e em
pouco tempo o seu número aumentou de forma assustadora. Tão assustadora, que
dizimaram as colheitas de cereais e arroz por todo o país, fazendo assim com
que entre 1958 e 1962, a China tenha passado por um período de grande fome no
qual terão sucumbido cerca de 24 milhões de pessoas.
Que lição tirar
de tudo isto?
Para que
história não se repita, talvez o melhor seja esquecermos a esferográfica
vermelha e as doces alegrias dos seus certos e as amargas desilusões dos seus
errados. Marcar certos e errados é uma coisa excitante e interessante, um
autêntico carrossel de emoções. Todavia, talvez o melhor seja pormos os alunos
a pensar pela sua própria cabeça para que sejam eles a chegar à conclusão
daquilo que está certo e daquilo que está errado. Com algum esforço, de certeza
que conseguem.
Num mundo com
com tantas “fake-news”, com tanta (des)informação em que o real e o virtual
cada vez se confundem mais, talvez seja essa a melhor forma de impedir que no
futuro andemos todos completamente aos pardais.
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