Chico Buarque de
Holanda vai receber o Prémio Camões, na segunda-feira, numa cerimónia no
Palácio Nacional de Queluz. É merecido, pois entre outras coisas, Chico Buarque
de Holanda é o maior letrista de sempre da língua portuguesa, cada uma das suas
canções é um poema. Por isso, e por muito mais, o futuro do português
‘brasileiro’ parece ser promissor.
Visto da escola,
o futuro do português de Portugal não parece ser tão prometedor. Numa
reportagem do semanário Expresso, uma professora do 1° ciclo referia que a
omissão de verbos e artigos por parte dos alunos enquanto falam é cada vez mais
comum. “Professora, posso casa de banho?” ou “mãe, posso gelado?” são exemplos
de construções frásicas que parecem estar a tornar-se moda.
Na mesma
reportagem, uma professora de Português dizia já não estranhar quando se depara
com um ‘k’ em vez de um ‘que’, abreviaturas em vez de palavras completas,
vírgulas e outros sinais de pontuação totalmente ausentes ou postos de forma
aleatória.
Neste entretanto, há crianças nascidas e criadas em Portugal, filhos de pais portugueses que nunca puseram um pé no Brasil, que falam com sotaque brasileiro e usam palavras e expressões vindas da terra de Vera Cruz. Assim sucede, porque passam imenso tempo a assistir a vídeos de YouTubers brasileiros.
Que essas crianças passem tanto tempo na internet, é razão para preocupação, quanto ao sotaque, não nos parece que seja grave. Há gente de lusitana origem que muito se preocupa com isso, e até há quem se escandalize. Nós não. Não estamos nem aí, pois que o verdadeiro problema não é o sotaque.
Para quem quiser ler uma notícia sobre este tema, aqui fica um link do Diário de Notícias:
https://www.dn.pt/sociedade/ha-criancas-portuguesas-que-so-falam-brasileiro-14292845.html
Podíamos ter-vos
deixado outros links de publicações portuguesas sobre este mesmo assunto, como
por exemplo, as dos jornais Sol e Observador ou da revista Exame. Mas podíamos
também ter-vos deixado o link de uma publicação brasileira, como por exemplo,
uma do jornal carioca O Globo que se intitula assim: “Em Portugal falar
‘brasileiro’ na escola é preocupação para pais e problema para alunos”.
Ou ainda uma outra, também oriunda do Brasil, neste caso da Folha de São Paulo, cujo título reza o seguinte: “Português brasileiro rende nota menor e discriminação em escolas e universidades portuguesas”.
Esta última vamos mesmo deixar-vos:
Aqui chegados, queríamos dar-vos uma pequena informação, caso a desconheçam. Quer a Folha de São Paulo, quer o Globo, são dois dos maiores e melhores jornais do mundo. Competem no mesmo campeonato que o The New York Times, o Washington Post, o Le Monde, o The Guardian ou o El País. Nenhum jornal português, mesmo o melhor dos melhores, está lá perto. A bem dizer, os jornais portugueses nem sequer jogam na mesma divisão que O Globo ou a Folha de São Paulo.
Para que vos
serve esta pequena informação? Para que se perceba que o português falado e
escrito em Portugal, é uma coisa quase paroquial, de trazer por casa. O
português que compete e mede forças à escala mundial com outros grandes
idiomas, é efetivamente o português ‘brasileiro’.
Talvez neste
momento, haja quem entre os nossos leitores portugueses, esteja a dizer de si
para si: pois está claro, o português ‘brasileiro’ tem muito mais mercado,
porque no Brasil a população é de mais de 200 milhões de pessoas e em Portugal
é de apenas 10 milhões.
Só que o
problema, a haver um problema, não é de quantidade, é sim de qualidade.
Espanha tem uma
população muito menor do que a América Latina, contudo, o castelhano com a
origem na Península Ibérica está vivo e recomenda-se.
Há crianças
portuguesas a falar com sotaque brasileiro, porque o português de Portugal é
uma língua em crise, que não seduz nem atrai. Basta estar uma hora a ver
televisão ou passar os olhos pelos chats e redes sociais para o perceber.
Não falamos tão
somente da crise ortográfica e gramatical, falamos também de uma crise
vocabular. Por um lado, usamos muito menos palavras do que usávamos antes, por
outro, parece que as palavras em português de Portugal não são boas para
dizermos o que queremos dizer e recorremos por isso a vocábulos estrangeiros.
No nosso
entender, o português de Portugal tornou-se demasiado pobre e muito pouco ágil.
Como se isso não bastasse, ainda se dá as ares de fidalguia, o que só o faz
parecer decadente e emproado. É por isso muito normal, que os mais novos dele
se vão afastando.
Mas não são
apenas os mais novos que se afastam, basta ver a quantidade de expressões
correntes vindas do inglês que diariamente usamos quase sem darmos por isso:
dar o feedback, ter o know-how, tirar o ticket, fazer o check-in, pagar em
cash, ir ao rooftop, comer um brunch…
Perdeu-se quase
completamente a capacidade de reinvenção e renovação da língua.
A vitalidade, a
audácia e o atrevimento linguístico de Gil Vicente, Eça de Queiroz, Alexandre
O’ Neill, Herberto Hélder e muitos outros parece já não existir. Há pouco quem
arrisque e se ponha a falar e a escrever à toa, ou seja, que invente novas
formas de se dizer o que se quer dizer de um modo desempoeirado e sem teias de
aranha.
Se porventura
não surgirem escritores, jornalistas, professores, cantores, atores,
argumentistas que renovem e reinventem o português de Portugal e o tornem
atraente e sedutor, não será de espantar que este vá continuando a definhar.
O modo e o estilo que predominantemente se continua a considerar como sendo bom português, é o da “redação do exame final da antiga quarta classe”. Claro que recauchutado com umas quantas modernices, temperado com umas pitadas de cosmopolitismo, mas no essencial, o que genericamente se considera bom português é exatamente o mesmo de há décadas.
Na comunicação social, nos relatórios, nos e-mails, nas letras das canções e para onde quer que se olhe, o que quase sempre se ouve e lê é um português bacoco.
Mesmo na
literatura, onde era de esperar uma maior inovação e criatividade linguística,
há dois ou três jovens (ou já não assim tão jovens) escritores consagrados, que
aquilo valha-nos Deus! O mais que se pode dizer deles, é que de certeza
absoluta que passavam no exame da quarta classe com mérito e distinção.
O romancista
José Saramago foi o único escritor de língua portuguesa a receber o Prémio
Nobel. Ainda assim, isso não o livrou de muitas e variadas críticas em
Portugal. Podia-se não gostar do homem ou não apreciar o que escrevia, mas isso
é outra coisa, a maior parte das críticas que lhe eram dirigidas, centravam-se
exclusivamente no facto de ele não usar pontuação e raras vezes fazer
parágrafos.
Significa isto, que a maior parte das críticas se baseavam no facto de Saramago não escrever do modo como décadas antes tinha aprendido na instrução primária.
Pelos vistos, em
Portugal, a língua portuguesa é suposto manter-se parada e estagnada e nem um
Prémio Nobel daí a demove.
Pensemos na
seguinte situação, em Portugal fala-se muito de futebol. É provavelmente o tema
de que mais se fala em território nacional: nas ruas, nos cafés e nos inúmeros
debates que proliferam pelos vários canais televisivos. O futebol é o assunto
no qual mais se usa a língua portuguesa. Com tanto falar, seria de esperar que
surgissem belas crónicas, poemas, romances e canções dedicadas ao pontapé no
esférico, contudo, não.
Os debates e as
conversas repetem-se jornada após jornada, temporada após temporada. Quem se
der ao trabalho de ir à RTP Memória e assistir ao debate acerca do
Benfica-Sporting de 1998, vai reparar que o dito à época, é praticamente o
mesmo que hoje se diz. Também no que ao futebol diz respeito, o português de
Portugal aparenta ter-se paralisado.
Se olhássemos
com mais atenção para o português ‘brasileiro’, veríamos que até no futebol
teríamos muito onde nos inspirarmos. Olhemos por exemplo para o maior dos
cronistas brasileiros, Nelson Rodrigues (1912-1980). Nas suas crónicas
transparecia toda a sua paixão pelo futebol. Uma paixão que não se limitava a
ver o futebol apenas como um desporto, mas sim como uma metáfora da vida.
Muitas das suas
frases são famosas e abundantemente citadas, falam-nos de futebol mas também de
sexo, de amor e pecado, da vida claro está. Como disse uma vez Nelson
Rodrigues, em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. Deixamos-vos umas
quantas frases suas nas quais se vê e lê muito mais do que a bola:
Invejo a
burrice, porque é eterna / Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma
partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos / Só o
cinismo redime um casamento. É preciso muito cinismo para que um casal chegue
às bodas de prata / O sábado é uma ilusão / Os homens mentiriam menos se as
mulheres fizessem menos perguntas / Entre o psicanalista e o doente, o mais
perigoso é o psicanalista / Tarado é toda pessoa normal pega em flagrante.
Continuemos no
futebol. Ao contrário do que sucede com o português de Portugal, o português
‘brasileiro’ também nos deu belas canções dedicados a esse tema, como por
exemplo, Fio Maravilha de Jorge Ben. A canção inicia-se assim “E novamente ele
chegou com inspiração, com muito amor, com emoção, com explosão em gol…"
Uma última
sugestão em português ‘brasileiro’, o romance "O drible" (2013) de
Sérgio Rodrigues. Para citar um crítico literário, trata-se do "melhor
romance já escrito sobre futebol em qualquer idioma", tendo sido vencedor do Grande Prémio Portugal Telecom de Literatura.
“O Drible” não é
apenas um livro para quem gosta de futebol, é também capaz de encantar todos
aqueles que apreciam uma boa prosa ficcional. Possui uma trama intrincada,
cheia de surpresas e reviravoltas, uma história forte, um drama sensível e uma
narrativa repleta de inovações ousadas.
É uma leitura
que se recomenda igualmente a uns quantos jovens escritores (ou já não tão jovens)
portugueses. Pode ser que os inspire e tentem então reinventar e renovar o
português de Portugal, largando finalmente a sua escrita bem arrumada, bem
comportada e direitinha.
Não é em Lisboa, nem no Porto, nem em Coimbra, nem em Guimarães, mas sim em São Paulo no Brasil, que se situa o melhor museu do mundo dedicado a uma língua, o Museu da Língua Portuguesa. É com ele que terminamos:
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