Uma das coisas
que uma criança saudável mais gosta de fazer, é de desarrumar tudo. Quando uma
criança é muito arrumada, é de se desconfiar. Em boa verdade, uma das coisas
que qualquer adulto saudável mais gosta de fazer, é de desarrumar tudo. Quando
um adulto é muito arrumado, é de se desconfiar.
Pensemos na expressão “Arruma lá isso” ou em outras equivalentes, como por exemplo, “Vai lá arrumar as coisas”. Assim de repente, alguém as imagina ditas num tom suave? Pelo menos nós não as imaginamos ditas dessa forma. Imaginamo-las ditas num tom assertivo, como se fossem uma ordem ou até mesmo um ralhete.
Não queremos ser sexistas, mas a imagem mental que imediatamente nos surge associada à ordem para arrumar as coisas, é sempre a de uma mulher. Ou da professora primária a dizer “Arruma a tua mesa” ou da mãe a gritar “Vai já arrumar o teu quarto” ou da legítima ou ilegítima esposa em tom passivo-agressivo, “Vê lá se ajudas a arrumar. Sou sempre eu que tenho de fazer tudo” ou então de uma bibliotecária.
De uma
bibliotecária?! Mais à frente já perceberão o porquê.
Nós gostamos do
mínimo de organização, e quando dizemos o mínimo, queremos mesmo dizer o
mínimo. Basta um poucochinho e já nos entendemos.
É certo que a
desarrumação tem muito má fama, e a arrumação está muito bem vista, no entanto,
nós consideramos que isso é uma grande injustiça.
Uma das mais fascinantes visitas que se podem fazer na vida, é viajar até Dublin na Irlanda e visitar a The Hugh Lane Gallery. É aí que se encontra o famoso estúdio do pintor Francis Bacon. Após o seu falecimento, o estúdio foi trazido de Londres e reconstruído ao milímetro tal e qual como estava na data da morte de Francis Bacon. É uma das mais belas odes à arte da desarrumação.
Pensemos nas estantes de um móvel de uma qualquer sala de estar. Se olharmos para as estantes e virmos os livros todos muito bem arrumadinhos uns ao lado dos outros, é certo e sabido que a função desses livros, é mais a de decorar a sala de estar e de dar às visitas a ideia de que nessa casa habitam pessoas cultas e ilustradas, do que propriamente a de serem lidos.
O estúdio de
Francis Bacon é belo e exalta a desarrumação, a organizada estante da sala com
os livros todos lado a lado, é simplesmente o resultado da presunção social.
Como os leitores
já estarão a adivinhar, a pouco e pouco, vamos dando melhor fama à injustiçada
desarrumação e pondo no seu devido lugar a muito sobrevalorizada arrumação.
Mas há pouco
falámos-vos de bibliotecárias. Na realidade, poderíamos igualmente falar-vos de
bibliotecários, para o efeito dá no mesmo e, como já antes tínhamos dito, não
queremos ser sexistas.
Nós já por inúmeras ocasiões tivemos oportunidade de visitar bibliotecas públicas com grupos de crianças. Uma das atividades que recorrentemente as bibliotecas que nos recebem preparam para os meninos e meninas, é a de lhes ensinar como é que os livros são catalogados, o que significam as suas cotas e porque ordem são arrumados.
Ficamos sempre
fascinados por saber, por exemplo, que a cota da edição de A.H. Oliveira
Marques, História de Portugal é “94 (469) MAR h” e que a classe 9 inclui o
assunto “História” a que corresponde a subclasse 94. A seguir vem o (469) que
significa Portugal, especificando-se um âmbito mais restrito do tema. Os
restantes elementos são convencionados para arrumar o livro por ordem
alfabética e corresponde às primeiras 3 letras do apelido do autor (MAR de
Marques) e à primeira letra do título (h de História).
Como se vê, a
arrumação dos livros por cotas, é um assunto próprio para deixar qualquer
criança desejosa de ler um livro.
Dito isto, no Japão, em Nakonoshima, na cidade de Osaka, Tadao Ando, um dos mais brilhantes arquitetos vivos, projetou uma biblioteca infantil completamente diferente. A biblioteca foi muito recentemente inaugurada. Situa-se junto ao rio Dojima. O interior, cujas paredes são forradas por estantes, é definido por um conjunto de escadas, passarelas e corredores que dão forma a um labirinto tridimensional que lembra as enigmáticas composições de Escher.
Mas para além da sua arquitetura ser muito peculiar, nos seus três andares há milhares de títulos de diferentes géneros que foram organizados de forma completamente aleatória. Está tudo desarrumado, de modo a incentivar a natural espontaneidade e curiosidade das crianças.
Deixamos-vos as
declarações do responsável pela biblioteca:
“We are using a new approach to
bring books to children by presenting books of all genres — everything from
picture books children’s stories that can be enjoyed by infants to children’s
literature, short stories, reference books reigning from different fields of
study, natural science books, art books, and so on — in a way they could all be
enjoyed neutrally and indiscriminately.”
Quem quiser
saber mais, pode consultar o seguinte site:
A nosso ver, uma
boa biblioteca infantil, é aquela em que as crianças podem ler ou simplesmente
folhear todo o tipo de livros e não apenas a mal designada “literatura
infantil” ou livros didáticos supostamente dedicados à sua idade.
Se pensarmos nos
grandes clássicos da mal designada “literatura infantil”, seja os “Contos dos
Irmãos Grimm”, seja as fábulas de Esopo ou de La Fontaine, seja “As viagens de
Gulliver”, seja a “Alice no País das Maravilhas”, seja muitos outros, sabemos que
nenhuma destas obras foi originalmente escrita pelos os seus autores com a
intenção de se destinar às crianças. Esses autores ficariam até espantados, se
soubessem que com passar dos anos, as suas obras são agora consideradas
literatura infantil.
Tal sucedeu
porque o universo que descrevem nas suas obras é feito de magia, de terrores, de
sustos, de risos e de fantasia. As personagens das suas narrativas agem como se
estivessem a brincar e deixassem tudo fora de ordem, desarrumado.
Há animais que
falam, gigantes, seres minúsculos, buracos que nos levam para outros reinos e
muitas outras coisas fora do lugar.
Em contraste, muita da mal designada “literatura infantil” que hoje em dia se escreve, é muito arrumadinha e feita de boas intenções. Preocupa-se mais em transmitir valores e dar lições de moral e de cidadania, do que propriamente com a magia, os terrores, os sustos, os risos e a fantasia. É normal, que os clássicos de sempre continuem a ser os favoritos das crianças e…dos adultos!
Pelo menos dos
verdadeiros adultos, ou seja, daqueles que souberam guardar em si a criança que
em algum dia foram e ainda não estão arrumados para a vida.
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