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Cozinho para o povo

 



Na imagem há um caracol que confunde a parte de trás de um rolo de fita-cola com um traseiro. Bem sabemos que os rolos de fita-cola podem ser usados para as mais diversas atividades lúdicas, ainda assim, se esta imagem for verdadeira (não fazemos a mais pequena ideia) tratar-se-ia de um fenómeno digno do Entroncamento.

 

O título que damos a este texto é enganador, pois não vamos falar-vos de culinária, coisa de que pouco ou nada sabemos, a não ser na óptica do utilizador. Vamos sim partilhar convosco uma importante e necessária reflexão histórico-cultural. O título, em boa verdade, só serve para vos abrir o apetite. É uma espécie de “hors-d'œuvre”.

 

Ouvindo e lendo as notícias, praticamente não há dia nenhum em que não haja um acontecimento histórico. Chove pouco? Há seca? Os baixos níveis de água nas barragens são históricos. Faz calor em maio? Os termómetros registaram temperaturas históricas. O Papa vem a Portugal? É uma visita histórica. O Ronaldo bateu mais um recorde de golos? É um feito histórico. O Benfica foi campeão? É mais uma conquista histórica. Estão a fazer obras para acabar com as cheias em Lisboa? É uma obra histórica. Fez agora 25 anos da Expo 98? Foi um momento histórico. A inflação subiu? Atingiu um valor histórico. E as taxas de juros? Como vão? Com números históricos, claro está.

 

Estes são apenas alguns exemplos que lemos e escutámos nos últimos tempos, mas temos muito mais na ponta da língua, não vamos é maçar-vos com isso. O ponto é que na comunicação social, e não só, confunde-se um acontecimento importante ou invulgar com um acontecimento histórico. Por vezes um acontecimento importante ou invulgar pode também ser histórico, mas na maior parte das vezes não o é.

 

Dantes, de quando em vez, havia fenómenos no Entroncamento: uma abóbora com mais de 60 quilos, uma planta que dava batatas por baixo e tomates por cima, um carneiro com quatro cornos, um pescador que pescou uma perdiz, a árvore com cinco variedades de frutos, um cacto com quatro metros, um homem com três rins, um toureiro que mordeu o touro, um ovo de galinha com 800 gramas, um pinto com três patas, uma couve que dava cravos, uma fava com 35 centímetros e sabe-se lá que mais.

 

No Entroncamento havia muitos acontecimentos invulgares, contudo, daí a dizer-se que eram acontecimentos históricos, ia uma grande distância. Atualmente parece ter-se perdido a noção dessa distância.




Um acontecimento histórico é aquele que inaugura uma nova era, perante o qual há um antes e um depois, não uma episódica visita do Papa, a pontual conquista de mais um campeonato ou uma abóbora gigante.

 

Lemos recentemente na revista Máxima um extenso artigo, onde se defende a tese de que estamos agora a viver a era dourada do traseiro, ou seja, que estamos perante um momento histórico para os traseiros. Um momento de viragem, neste caso de viragem para trás.

 

É um artigo muito bem feito, cujas fontes e referências são respeitáveis e que, para além disso, é bem escrito e demonstra um elevado rigor científico. Todavia, nós discordamos do ponto que o artigo defende, não acreditamos que estejamos a viver uma era dorada do traseiro, não acreditamos que estejamos num momento de uma viragem histórica. Acreditamos sim que o traseiro é eterno, que, como uma constante, atravessa toda a história da humanidade.

 

Abaixo deixamos-vos o link para o referido artigo para o caso de querem aprofundar os vossos conhecimentos sobre este premente tema:

 

https://www.maxima.pt/beleza/detalhe/como-o-rabo-feminino-se-tornou-politico-e-o-que-isso-revela-a-nosso-respeito

 

Há quem se refira ao traseiro de um modo mais coloquial, designando-o por cu ou rabo. Claro que há outras designações ainda mais coloquiais, mas fiquemo-nos com estas. O bom povo português desde tempos muito antigos que se apropriou do cu e do rabo. É um dos seus tópicos favoritos. Para o comprovar basta ver as inúmeras expressões populares em que esses termos são usados: quem tem cu tem medo, rabos de palha, nascer com o rabo voltado para a lua, andar de cu tremido, ir para o cu de Judas, és um lambe cus e por aí afora. Cus e rabos são coisa que desde há muito não faltam à oralidade popular nacional.

 

Que outro povo se lembraria de dizer de alguém que deixou uma porta aberta, que tem o cu grande? Olhem que é preciso ter quase uma obsessão doentia, para alguém se lembrar de relacionar portas abertas com cus grandes!

 

É inquestionável que os cus e os rabos são uma presença permanente em Portugal desde a fundação da nação e, assim sendo, temos aqui um ponto a nosso favor e contra a tese defendida pela revista Máxima. Ou seja, não estamos atualmente a viver nenhuma era dourada do traseiro, pois o traseiro é algo que enche a imaginação nacional desde os mais longínquos tempos.

 

Mas não é apenas pelos ditos populares que pululam cus e rabos, também os eruditos se deixaram fascinar por esse itens. De entre esses, o mais conhecido é Bocage. Autor que dedicou múltiplos versos a tais temas, nos quais nos fala, e passamos a citar, de “cus apetecíveis” e de outras coisas mais. Vale a pena ir ler, é um clássico.

 



O que a obra literária de Bocage (1765-1805) mais uma vez nos prova, é que a era dourada do traseiro não é uma coisa de agora, já vem de trás.

Estando nós a falar do que estamos a falar, é claro que só podia vir de trás. Na literatura portuguesa, vem até de muito mais atrás. Por exemplo, Gil Vicente (1465-1536) também já era um entusiasta. Deixamos-vos uma ternurenta e romântica passagem de um dos seus textos para o demonstrar:

“Durme, me ruliño, durme. Que si non dou-te no cu. Qui morran os vellos todos. E quedamos eu mais tú.”

 

Mas não nos alonguemos em outros exemplos, pois se assim o fizéssemos tínhamos tantos que nunca mais acabávamos. O que efetivamente queríamos comprovar, parece-nos comprovado. A comunicação social usa e abusa do qualificativo “histórico”, sendo que, a revista Máxima levou esta tendência ao extremo, pois postula o surgimento de uma era dourada do traseiro, quando este é algo que está presente desde os primórdios.

 

Para terminar, abaixo deixamos-vos uma imagem do traseiro da famosa Vénus de Willendorf, uma estatueta que se estima ter sido esculpida 25000 a 28000 anos antes de Cristo, ou seja, altura em que provavelmente se deu um verdadeiro acontecimento histórico, teve início a era dourada do traseiro, que, ao que se sabe, continua ininterruptamente até aos dias de hoje.





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