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Em guerra com o óbvio



Há lugares nada óbvios. Lugares que jamais nos ocorreria visitar. Alguns desses locais nada óbvios, nem sequer sabemos que existem, mas mesmo que saibamos, não é por isso que se tornam mais óbvios. Falamos de locais como por exemplo, uma garagem.

 

A não ser que se tenha interesse em a adquirir ou em a arrendar, a quem ocorrerá visitar uma garagem? Em princípio a ninguém. Dito isto, há uma garagem cuja visita recomendamos, a Garagem Sul, que se situa num dos espaços subterrâneos do Centro Cultural de Belém.

 

Como já terão adivinhado, o espaço Garagem Sul, obviamente que não funciona como parque de estacionamento para automóveis. Funciona sim como espaço para exposições temporárias. É um espaço que se dedica fundamentalmente à arquitetura, mas tenta dirigir-se não apenas a um público especializado, mas sim a todos, independentemente de terem ou não formação em arquitetura.

 

É isso o que sucede precisamente neste momento, com as três atuais exposições. Duas delas cruzam temas arquitectónicos com educação, a outra cruza tudo, arquitetura, fotografia, pensamento, poesia e muito mais.

Não são exposições óbvias. Não são espetaculares, nem enchem o olho, tipo dessas com cenas Imersivas e isso. São sim exposições destinadas a quem tenha vontade e paciência para aprender a ver. Aprender a ver, é saber ver para além do óbvio.

 

Vamos começar por falar-vos de uma dessas exposições, a que se intitula “Sala de aula - Um olhar adolescente”. Cruza arquitetura e educação. Se lermos o folheto de apresentação desta exposição, constatamos que tem como propósito, pensar que efeitos terá tido na geração que durante a pandemia estudou em casa, o regresso a espaços de aprendizagem inalterados, ou seja, às velhas salas de aulas de sempre.

 

Se bem se recordam, durante os confinamentos, havia muito quem dissesse, que após a pandemia tudo seria necessariamente diferente, e muito concretamente, as salas de aula. Existia a convicção mais ou menos generalizada, que tendo alunos e professores passado por uma situação tão radicalmente distinta da habitual, isso causaria obviamente uma série de inevitáveis transformações. Todavia, uma vez passada a pandemia, verificou-se que genericamente, a sala de aula se mantém idêntica ao que sempre foi.

 

A exposição levanta várias interrogações e lembra as transformações ocorridas nas salas de aula após a grande destruição das escolas durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa altura, ao contrário de agora, as antigas normas de funcionamento foram transgredidas e as relações dentro do espaço escolar foram completamente reorganizadas. À época, pareceu óbvio a todos que nada poderia ficar como antes. Por que razão não sucedeu desta vez o mesmo, é uma questão para a qual esta exposição procura respostas.




A segunda exposição cruza igualmente arquitetura com educação. Neste caso através de uma obra projetada nos anos 60 pelo arquiteto Raúl Chorão Ramalho: uma escola primária na ilha de Porto Santo.

 

O arquiteto Raúl Chorão Ramalho projetou um edifício nada óbvio. A sua linguagem era moderna, completamente em sintonia com as vanguardas da época, contudo, o arquiteto soube deter o seu olhar de modo a tirar partido das especificidades ambientais e materiais do lugar. Foi capaz de unir a ancestral identidade local com a modernidade.

 

Raúl Chorão Ramalho evitou duas obviedades. Uma era ser conservador e projetar um edifício típico, semelhante a todos os restantes que existiam em Porto Santo à altura. A outra, era projetar um edifício moderno completamente desenraizado do seu contexto. Não fez nem uma coisa nem outra.

Distinguiu-se pela sua inovação e autenticidade arquitetónica, e de caminho, contrariou também os modelos do Plano de Escolas do Centenário, que então vigorava por todo o país, desafiando completamente a ideologia educacional da época.

 

A escola serviu como espaço de aprendizagem para várias gerações de porto-santenses e, hoje, classificada como património, acolhe um programa de atividades e residências artísticas que a projeta no futuro.




A terceira exposição, é aquela em que se cruza arquitetura, fotografia, pensamento, poesia e muito mais. É uma exposição de fotografia do italiano Luigi Ghirri (1943-1992).

 

Luigi Ghirri entendia a fotografia como um instrumento de meditação filosófica e o seu principal intento era lutar contra a anestesia do olhar. Para Ghirri, estamos demasiados carregados com imagens e já não conseguimos olhar para o mundo como se fosse uma primeira vez.

Olhamos para o mundo como se tudo fosse óbvio, quando na verdade nada é óbvio. Para voltarmos a ver como se fosse pela primeira vez, temos de aprender a ver e, aprender a ver, é lutar contra o óbvio.

 

Parece-nos óbvio que quando alguém é fotografado, deve estar de frente para a câmera. Luigi Ghirri fotografava frequentemente as gentes de costas. Tentava assim que o infinito número de heterónimos que há em cada um de nós se deixasse vislumbrar. Tentava assim que aparecesse na foto, o que de não óbvio há em nós.




A fotografia de Luigi Ghirri pede-nos que tenhamos novamente atenção à singularidade de cada coisa, que de nada possamos dizer que é óbvio, que já está visto. Que tudo seja uma aparição a ser revelada.

 

Em boa verdade, até mesmo aqueles objetos banais, até mesmos esses, estão carregados de desejos, de sonhos e de recordações, de tudo o que não é óbvio.




 



 

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