E eis que se
inicia o mês de maio. Na Grécia antiga e nos tempos do antigo Império Romano,
maio era um mês associado à fertilidade e à renovação da vida e de todas as
coisas. Atualmente, é no primeiro dia de maio que se comemora o Dia do
Trabalhador. Data que será assinalada com manifestações comemorativas pelas
ruas e avenidas deste nosso Portugal.
Em Lisboa, a
maior manifestação iniciar-se-á lá pelo início da tarde, à mesma hora e no
mesmo local de todos os anos, repetindo-se assim o habitual desfile dos
trabalhadores, que como sempre, partirá do Martim Moniz e lenta e
melancolicamente subirá a Avenida Almirante Reis, terminando o seu percurso na
Alameda, local onde os líderes sindicais farão os discursos do costume.
Que ninguém nos
interprete mal, nada temos contra os sindicatos e muito menos contra os
trabalhares e o 1º de maio, muito pelo contrário, temos tudo a favor. Tudo,
exceto o modelo de comemoração festiva que assinala este dia nos parecer um
tanto ou quanto para o gasto.
Noutros tempos,
o primeiro de maio, era uma festa viva e vibrante, hoje em dia parece ser um
ritual que se cumpre mais por obrigação, do que propriamente por gosto e
entusiasmo.
É o que nos
parece a nós, que desde tenra idade, já por inúmeras vezes ao longo dos anos
estivemos sentados numa esplanada de café neste primeiro dia de maio e nisto
vimos passar mesmo à nossa frente, o já referido desfile. Temos verificado que,
apesar das vigorosas palavras de protesto, de ano para ano tudo parece mais
chocho, esmorecido e arrastado. A chama foi-se apagando, mas que remédio, à
falta de melhor, lá vão os mesmos de sempre desfilar.
Em síntese,
deste primeiro de maio ninguém espera nem grandes novidades, nem qualquer
surpresa, é um dia igual aos outros, só que é feriado. As atuais comemorações
do dia primeiro de maio recordam-nos um poema de Eugénio Andrade do qual vos
deixamos a parte final:
Já gastámos as
palavras.
Quando agora
digo: meu amor,
já não se passa
absolutamente nada.
E no entanto,
antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as
coisas estremeciam
só de murmurar o
teu nome
no silêncio do
meu coração.
Não temos já
nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que
me peça água.
O passado é
inútil como um trapo.
E já te disse:
as palavras estão gastas.
Mas cá está, tudo
isto é o que nos parece a nós, não pomos de lado a hipótese que talvez
estejamos enganados e de que toda aquela gente que desfila no primeiro de maio
tenha em si uma chama imensa ou até um vulcão adormecido prestes a eruptir numa
gloriosa explosão de alegria.
Na verdade nunca
se sabe, pois que afinal de contas, quem vê caras não vê corações, estamos na
primavera e não há de certeza absoluta época do ano mais apropriada para
eruptir do que a primaveril.
Para os nossos
leitores que eventualmente sejam puristas da língua, fica um aviso, eruptir é
uma palavra que não existe no dicionário. Ainda assim, é uma palavra gira e
sugestiva, e por isso a usámos. Podemos fazer coisas novas e usar palavras que
não existem, não somos obrigados a comer sempre bacalhau com batatas, passe a
expressão, que, a bem dizer, também não sabemos se efetivamente existe ou se a
acabámos de inventar.
Há muitos anos
foi lançado um álbum, um LP como de dizia dantes, que se intitulava “Cantigas
de Maio”. O álbum era de José Afonso.
José Afonso é um
músico que normalmente é associado aos movimentos de esquerda, à revolução de
abril e às cantigas de protesto. Estamos capazes de apostar, que em muitas das
manifestações e festas deste dia do trabalhador, se irão certamente ouvir uns
quantos temas de José Afonso. É o que habitualmente sucede desde há muitos
anos, não se espera que hoje seja diferente.
Dito isto, o que
queríamos aqui destacar na música de José Afonso, não era as suas associações
políticas, pois isso há muito que muita gente já o fez, mas sim a sua música
propriamente dita.
Talvez José
Afonso seja um dos mais injustiçados músicos de sempre, a sua vertente de
cantor de protesto e de intervenção foi tão colocada em destaque, que a
inovação, a inventividade e a modernidade de muitas das suas melodias passam
frequentemente para segundo plano.
Pensemos num dos
temas desse álbum, mas não no “Grândola Vila Morena”, que está demasiado
conotado, toda a gente já o ouviu milhares de vezes e quando se o ouve, não é
propriamente a música que se ouve, mas mais uma mensagem política. Pensemos sim
num outro tema, “Maio maduro maio”.
Nesse tema, José
Afonso introduz o surrealismo no seu reportório poético-musical e une de um
modo absolutamente inovador os sons próprios das baladas tradicionais com
sonoridades urbanas. “Maio maduro maio” combina na perfeição o lirismo poético
com uma notável modernidade musical. Os arranjos são prodigiosos e a
orquestração completa uma arquitetura melódica a roçar o sublime.
“Maio maduro
maio”, em termos de inovação musical, em nada fica atrás ao que de mais
original e sofisticado se fazia nessa época em Nova Iorque, Londres ou Los
Angeles. É por isso muito injusto, que frequentemente se tome José Afonso
unicamente como um músico de protesto e de intervenção, cujos temas se centram
no mundo campestre, quando na realidade muitos das suas músicas revelam um
grande cosmopolitismo e uma sofisticação dir-se-ia surrealista.
Atentemos no
primeiro verso: Maio maduro Maio, quem te pintou?/ Quem te quebrou o encanto,
nunca te amou/ Raiava o sol já no Sul / E uma falua vinha lá de Istambul.
Que vinha uma
falua fazer lá de Istambul? E vinha para onde? Quem te quebrou o encanto nunca
te amou? Mas estamos a falar do quê e de quem? Maio foi pintado? E a que
propósito vem misturado no meio disto tudo o raiar do sol? E só raiou no sul,
não no norte?
Como
imediatamente percebemos logo por este primeiro verso, “Maio maduro maio” não
nos traz mensagens simples, tipo “O povo é quem mais ordena”. Tudo é muito, mas
muito mais complexo do que isso.
Mas para além da
letra, há a música. Quem souber ouvir, que escute os sons de fundo, os
comedidos coros, a discreta flauta, a subtileza da percussão e todos aqueles
pequenos nadas que são tudo.
E por aqui findamos, na esperança de um novo maio, mais fértil, complexo, subtil, sofisticado e inovador do que os habituais, um maio maduro maio…
Talvez não seja
preciso muito, não raras vezes, há pequenos nadas que mudam tudo.
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