De que vale
viver a vida sem riscos? De pouco na verdade. Sem riscos, o mais que se pode
esperar é ir-se andando com a cabeça entre as orelhas, uns dias melhor, outros
dias pior, vendo se amanhã está de chuva ou se faz sol, e ir vida adiante à base
de cautelas e caldos de galinha que nunca fizeram mal ninguém.
A bem dizer, há
muito quem diga, que na vida o melhor é evitar correr riscos. Mais vale um
pássaro na mão que dois a voar e a gente tem é de andar de pestana aberta,
preparados para o que der e vier, não vá cá o diabo tecê-las e lá temos o caldo
entornado e a pintura toda borrada.
Quem nunca teve
receio de pinturas borradas e de riscos foi Pablo Picasso (1881-1973), o homem
que revolucionou o desenho e a pintura. Ao longo da sua longa vida,
revolucionou o desenho e a pintura por diversas vezes, não apenas uma.
Desde a
juventude até à velhice, foram nove as diferentes mulheres que sucessivamente
lhe serviram de musa inspiradora e das quais fez múltiplos retratos, que estão
hoje expostos nos melhores museus do mundo. Nesses entretantos, houve outras
mulheres, que não chegaram a ir para musas, mas que foram importantes e também
contam. Como se depreende por estes dados biográficos, Picasso não era homem
para se ficar apenas por uma. Por uma revolução artística, bem-entendido.
Os historiadores
de arte dividem a obra de Picasso por diversos estilos, sendo os mais
conhecidos o período rosa, o azul, o africano, o cubismo analítico, o cubismo
sintético, o classicismo e o surrealismo.
Cumpre-se este ano o quinquagésimo aniversário da morte de Picasso e durante o próximo verão e para lá dele, haverá inúmeras exposições e eventos a assinalar a data por toda a Europa e também nos Estados Unidos.
Relativamente ao
quinquagésimo aniversário da morte de Picasso, em Portugal não há nada. Nem no
verão, nem para lá dele. Em compensação haverá muitas feiras medievais e de
artesanato, assim como abundantes festivais da sardinha e do marisco.
Em terras
lusitanas não somos muito dados à arte moderna. Preferimos antes uma patuscada
bem regada e eventos que celebrem ancestrais tradições e promovam os típicos
produtos das nossas gentes. Calhando haver música, melhor ainda. Sendo o
artista convidado o Quim Barreiros, o Toy, a Ágata, a Rosinha ou outro do
género, então é que é um regalo.
Quais cá
Picassos, arte moderna, pinturas borradas e riscos, toca lá mas é a cantar e a
bailar: “Apito comboio que coisa tão linda, Apito comboio perto de Coimbra,
Apito comboio, lá vai apitar…”
Abaixo, “A
dança”, obra de 1925 de Pablo Picasso.
Pablo Picasso disse um dia assim: “Quando tinha 15 anos sabia desenhar como Rafael (il Divino Raffaello, como o chamavam na Roma do século XV), mas precisei de uma vida inteira para aprender a desenhar como as crianças.”
Não sabemos
exatamente o que Picasso quereria dizer com isso, mas uma coisa quis dizer de
certeza absoluta, ou seja, que desejava conseguir pintar com a espontaneidade,
a vivacidade e a simplicidade das crianças.
Desenhar como uma criança, ou seja, desenhar sem pensar, com gestos ao sabor do vento em puro movimento. Um traço, dois traços e já está: surge uma casa. Uns rabiscos ondulados e pronto, temos as ondas do mar. Os rabiscos encrespam-se e é preciso cuidado que o mar está bravio. Uma espécie de círculo lá ao alto, uns raios que dele saem e subitamente no papel resplandece a luz do sol.
Desenhar com a
alegria de uma criança, ou seja, apenas com uns traços, uns riscos e uns
quantos rabiscos e consegue-se desenhar a vida toda e o universo inteiro: o
pai, a mãe, a casa, a bola, o bolo, o cão, o gato, a árvore, a nuvem, o céu, a
praia, a lua, a roda, o carro, o barco, o foguetão e tudo o que demais existe.
Picasso nasceu
no sul de Espanha, em Málaga. Em jovem mudou-se para a mais moderna e
cosmopolita Barcelona, contudo, foi em Paris que se tornou um grande artista.
Foi em Paris que contactou com todas as correntes e tendências da modernidade.
Paris era à época a capital do mundo, a mais sofisticada, divertida e agitada
das cidades. Tudo o que era novo, excitante e arriscado crescia e florescia em
Paris.
A Paris chegava
gente vinda de todo mundo. Gente rica, celebridades, músicos, saltimbancos,
foragidos e também artistas e escritores. Entre eles, o americano Ernest
Hemingway, que inicia um dos seus romances do seguinte modo:
“If you are lucky enough to have
lived in Paris as a young man, then wherever you go for the rest of your life,
it stays with you, for Paris is a moveable feast.”
A lenda de Paris
pouco seria sem a arte moderna. É certo que Paris possui alguns símbolos da
época medieval, como por exemplo, a Catedral de Notre-Dame. Possui também o
esplendoroso Palácio de Versalhes, o gigantesco Louvre, a Torre Eiffel,
costureiros célebres e uma requintada gastronomia, contudo, aquilo que
verdadeiramente a transformou numa cidade mítica, foi mesmo a arte moderna.
Tudo começa na segunda metade do século XIX. Deu-se então uma revolução no modos de ver e de olhar. Foi uma revolução artística, mas que correspondeu a uma igual revolução nos modos de viver e sentir.
Abriram-se
imensas avenidas a que chamaram boulevards, ergueram-se altos prédios e
surgiram os grandes “magasins”, onde havia de tudo para comprar. “Les Grands
Magasins”, umas enormes lojas destinadas “Au bonheur des dames”.
Inventou-se a fotografia e depois o cinema, apareceram os automóveis e com tudo isto, subitamente, a vida tornou-se mais rápida, arriscada, surpreendente e vibrante.
A moral e os
costumes também se transformaram. Por todo lado havia cafés e cabarets que eram
frequentados por senhores e igualmente por senhoras. O que antes parecia mal,
era agora o normal. Agora as senhoras até vestiam roupas leves e práticas e
liam novelas que antes lhes estavam vedadas. Novelas com histórias de mulheres
adúlteras ou libertinas. Novelas cujo sucesso entre o público feminino foi
estrondoso, como por exemplo, os hoje clássicos da literatura, “Madame Bovary”
de Flaubert, “Bel Ami” de Maupassant e “Nana” de Zola.
Um pequeno aparte, estes livros que à época foram aquilo que os franceses designam como um “Succès de scandale”, fazem atualmente parte dos currículos escolares. Não deixa de ser curioso verificar as voltas que o mundo dá.
Em resumo, tudo estava em mudança e, por consequência, a arte também. Em 1863 dá-se um enorme escândalo que abalou toda a Paris, Édouard Manet pintou um quadro e intitulou-o “Olympia”. Atualmente é quase inverosímil que um quadro possa provocar um enorme escândalo, mas os tempos eram outros e foi isso que efetivamente sucedeu.
A obra foi
exibida pela primeira vez no Salon de Paris, local onde anualmente
acorria toda a gente para ver as novidades, ricos e pobres, intelectuais e
analfabetos, críticos de arte e simples curiosos, viajantes de passagem e
famílias em passeio de domingo. Era uma grande festa popular, o Salon
de Paris.
Houve quem ao se deparar com a “Olympia”, virasse a cara horrorizado. As famílias de bem acenavam a cabeça em sinal de desaprovação. Às crianças tapava-se-lhes os olhos para que não ficassem corrompidas com o que para ali ia. Tinham trazido os petizes num passeio educativo e cultural, e não é que Manet lhes espetava com aquilo à frente. Uma pouca-vergonha.
O que transtornou o público não foi a nudez de Olympia. Isso estava o público mais do que habituado a contemplar no Louvre nas obras da antiguidade clássica, da Renascença e do Barroco. O que chocou foi o facto de Olympia não representar nenhuma ninfa ou deusa mitológica, mas sim uma simples mulher da má vida, uma meretriz.
Mas mais do que
isso, o maior choque e transtorno foi o olhar desafiante que Olympia dirige
diretamente ao espectador que a observa, como se o interrogasse, abordasse ou
convidasse.
Esse olhar direto dirigido a quem observa o quadro, foi o que verdadeiramente causou o escândalo. Todavia, esse olhar direto ao espectador é o momento inaugural da arte moderna. É nesse olhar que se funda a modernidade artística.
O quadro está
exposto no Museu de Orsay em Paris.
O olhar desafiante e interrogativo que Olympia dirige ao espectador que a observa, é a essência da arte moderna. Ao contrário do que antes sucedia com a arte antiga, que existia somente para ser bela, apreciada e contemplada, a arte moderna existe para desafiar e interrogar quem a observa.
A definição de arte moderna poderia muito bem ser essa, arte moderna é aquela que lança desafios e interrogações a quem a observa. Quem a observa não pode ficar passivamente a olhar e a pensar “ai que coisa tão linda, que bem ficava na minha sala de estar, combina mesmo com a cor do sofá”.
Na arte moderna,
o pensar tem de ir para além da disposição da sala de estar. Logo para início
de conversa, não raras vezes, o primeiro desafio e interrogação que uma obra de
arte moderna suscita ao observador é “mas que raio é isto? Isto até uma criança
fazia!”.
Aceitar esse
desafio e interrogação, é o primeiro passo de muitos outros, para se olhar para
um Picasso e perceber logo o que aquilo quer dizer.
Na arte moderna há riscos, entre outros, há o risco de quem olha não compreender o que vê. Há também pinturas borradas, traços e rabiscos que poderiam ter sido feitos por crianças. E depois? Qual é o problema?
Abaixo, uma
pintura de Cy Twombly (1928-2011), “Contemplation of the Chrysanthemum”.
Imaginemos um
casal de meia idade ou já reformado, para o caso tanto faz. Vão de
fim-de-semana ao Caramulo, vão relaxar para as termas. É um passeio sem riscos,
tranquilo, sossegado e inclusivamente bom para a saúde.
Em boa verdade,
até pode ser um fim de semana em família alargada, com filhos, tios, sobrinhos,
netinhos e tudo. Tipo uma comemoração de bodas de ouro, de diamante ou qualquer
cangalhada do género. Dito assim em duas pinceladas: uma família em que é tudo
gente de bem, trabalhadora, respeitável e temente a Deus.
Passam o sábado
em festa, e no domingo pela manhã, após a missa, dão uma volta pelas redondezas
para desenjoar e esticar as pernas, e nisto descobrem que no Caramulo há um
pequeno museu. Já que ali estão, vão visitá-lo.
Lá vai tudo feliz da vida em alegre excursão, eis senão quando repentinamente dão de caras com uma pintura de Picasso (para quem não saiba, há apenas duas pinturas de Picasso em Portugal, uma está no CCB em Lisboa e a outra no Caramulo).
De uma destas é
que ninguém estava à espera. Então vem uma pessoa sossegar para as termas, traz
a família, e assim do nada, zás, apanha com uma pintura do Picasso!
Como se não bastasse, há ainda uma pintura de um tal Amadeo de Souza-Cardoso e outra de uma Vieira da Silva. Ao menos esses são portugueses, mas ainda assim é tudo coisas que não se percebe nada do que para ali vai: riscos e borrões.
Isto é falta de
consideração da entidade turística do Caramulo, apresentar tais modernices a
quem vem visitar esta tão tradicional região do país. Então não havia um
artesanato para mostrar aos visitantes? Umas obras dos artistas locais? Com
certeza que no centro de dia da terra, os velhotes fazem coisas mais
engraçadas, mais bonitas.
Coisas que se vissem e percebêssemos o que estamos a ver. Agora isto? Valha-nos Deus. Se alguma vez pendurava isto na sala de estar. Isto até uma criança fazia.
https://museudocaramulo.pt/highlights/
Nós não queremos pendurar um Picasso na nossa sala de estar, ou melhor, querer até queríamos, só que o patrão paga mal e não dá. O que deu foi para levar o Picasso à sala de aula.
Deixamos-vos o
guião “Isto até uma criança fazia”.
Guião de aprendizagem
https://drive.google.com/file/d/1usdAEy1FlGMNZ3-xJmGPHkp20alf4Qho/view?usp=sharing
Ficha de exploração
https://drive.google.com/file/d/15wgfNqNSmY9Vqv6I5nn3fakvaQu7_891/view?usp=sharing
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