O título deste texto glosa o título português de um
filme realizado por Sofia Coppola em 2003, “O Amor é um lugar estranho”, no
original “Lost in Translation”. Em “O Amor é um Lugar Estranho”, Bill Murray e
Scarlett Johansson são dois americanos em Tóquio.
Bill Murray é um homem casado que perdeu o brilho de outros tempos e atravessa agora uma crise de meia-idade. Está sozinho na cidade para gravar um anúncio a um whisky. Scarlett Johansson é uma mulher que anda a reboque do marido, um fotógrafo que passa dias inteiros a trabalhar. Os caminhos de ambos cruzam-se no bar do hotel onde estão hospedados. Esse encontro casual acaba por se transformar numa intensa e indefinível relação. Amizade? Amor? Cumplicidade? Afinidade? Não se sabe.
No fim da história, os dois acabam por ficar com quem
antes estavam e não um com o outro. Para o espectador, assim como para os
personagens, o momento da despedida é dilacerante. Embora não saibamos com
certeza absoluta, presumimos que os dois preferiram sentir-se a si mesmos dilacerados,
ao invés de terem que dilacerar um outro alguém.
Nós que já temos décadas de vida em cima do lombo,
sabemos com toda a certeza, que há poucas coisas na vida tão dilacerantes como
um abandono ou uma separação. São momentos em que ficamos rasgados por dentro e
em que o tempo parece não passar, em síntese, não é lá grande coisa.
Quando éramos alunos, nunca chumbámos um ano, mas foi por pouco. Logo ali por volta do 6° de escolaridade, decidimos que a escola pouco tinha para nos ensinar. Claro que foi uma decisão só nossa, tomada com a imensa convicção e sabedoria que só a adolescência nos dá. Podia ter corrido mal, por sorte não correu.
A escola era um sítio onde tínhamos de ir por motivos
administrativos e legais e para depois ir para a universidade, mas com o qual não
valia a pena perdermos grande tempo. Havia filmes para ver, livros para ler,
exposições, música, viagens e gente interessante com quem conversar e com quem
estar. Isso sim era aprender, era viver, à escola íamos com um único objetivo:
não chumbar.
Para concretizar esse objetivo, havia duas regras a
cumprir: não podíamos ultrapassar o limite de faltas e tínhamos de ir aos
testes e tirar pelo menos 50%. Eram coisas relativamente fáceis de se fazer,
até que dois anos depois, já no 9° ano, começaram a aparecer uns professores
com a conversa de que a avaliação era contínua, que não bastava tirar 50% nos
testes, ir aparecendo e blá-blá-blá.
Como é evidente, não levámos a conversa a sério e
continuámos a fazer a vida que antes fazíamos e a frequentar a escola de um
modo intermitente.
Todavia, quando caminhávamos para o final do ano letivo, descobrimos com surpresa e horror, que os professores estavam mesmo a falar a sério. Que existia a real possibilidade de nos chumbarem de ano. O sentimento que nos assaltou foi de autêntica dilaceração, ficámos rasgados por dentro e enquanto as notas não foram publicadas, o tempo parecia não passar.
Acabámos por passar de ano, no entanto, aquelas tantas
semanas em que a possibilidade de chumbarmos esteve presente na nossa vida,
foram simplesmente muito más.
É certo que não ligávamos grande coisa à escola, mas a
mera possibilidade de ela nos “rejeitar” e nos marcar com um chumbo, abalou-nos
profundamente. Não haveríamos de morrer por causa disso, isso não, mas
aprendemos qual é a sensação que se tem quando nos sentimos um falhado, um
burro e um triste.
Agora, ao dia de hoje, em que já temos mais umas
décadas de vida em cima do lombo do que tínhamos nessa altura, sabemos com toda
a certeza, que há poucas coisas na vida tão dilacerantes como um chumbo.
Os estragos que um chumbo nos provoca enquanto somos crianças
ou jovens, é equivalente ao que na vida adulta nos provoca um abandono ou uma
separação, em síntese, são momentos que não são lá grande coisa.
A quem quiser ler sobre esses tipo de momentos, ou
seja, os da rejeição e do falhanço, aconselhamos “Os dias do abandono” de Elena
Ferrante.
É sempre com imenso espanto, que constatamos a enorme quantidade de alunos que todos os anos letivos chumbam no nosso país. Bem sabemos que o termo técnico é retenção, não aprovação ou não transição conforme os casos, mas ainda assim, cremos que chumbar é uma palavra que descreve muito melhor a situação do que qualquer outra.
A palavra chumbar, transmite-nos melhor que qualquer uma das outras, o efeito que causa a um aluno não transitar, ficar retido ou não ser aprovado. Chumbar é algo que deixa marcas e/ou cicatrizes, ou seja, que dói.
Mas deixa marcas e dói para quê? Para nada ou quase nada.
Apesar da situação ter melhorado nos últimos anos,
Portugal continua a ser um dos países da Europa onde mais alunos chumbam.
Segundo os mais apurados estudos, o efeito global de reter um aluno é
quantificável entre 0,06 e 0,10 valores numa escala de 1 a 5.
Vale portanto bem a pena gastar milhares de euros ao erário público e dilacerar uma criança ou jovem para se obter um efeito positivo que se situa entre as seis e as dez centésimas. As contas são fáceis de fazer e, se porventura não forem, este artigo do jornal Observador explica tudo bem explicado:
https://observador.pt/especiais/os-alunos-devem-chumbar-e-mais-complicado-do-que-parece/
A avaliação é um lugar estranho. Por exemplo, há quem
tenha passado uma vida inteira a avaliar vinhos. Há quem seja uma autoridade
reconhecida a nível mundial e tudo saiba do que à avaliação de vinhos diz
respeito, ainda assim, falha clamorosamente.
Uma notícia dos últimos dias dá-nos conta que o canal televisivo belga RTBF enviou um vinho a martelo, daqueles feitos com tudo até com uvas, ao prestigiado Concurso Internacional Gilbert Gailard. É um vinho cujo preço habitual é de 2,49€. Os membros do júri, provaram, ponderam e avaliaram, resultado? Atribuíram a medalha de ouro a uma zurrapa.
Comentando esta situação, um produtor português disse
o seguinte: “Os concursos valem o que valem. Os resultados dependem sempre dos
provadores e há muitos com gostos estranhos. Um bom produtor, se tiver o azar
de cair no grupo menos generoso, pode sair chamuscado”.
O que vale para a avaliação de vinhos, vale para a avaliação escolar dos alunos, ou seja, se não houver generosidade em quem avalia, alguém pode sair chamuscado.
A primeira coisa que sucede quando alguém chumba, é que as férias de verão ficam imediatamente estragadas. Já nem se sente o perfume do mar e olha-se em redor para outros que vivem, falam e amam, sentindo-se a tristeza imensa de não ser como eles, de ser aquele que chumbou.
Tal e qual como na canção de Bruno Martino que aqui
vos deixamos, “E la chiamano estate”:
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