Hoje é dia do Corpo de Deus, feriado religioso cujo nome original em latim é Corpus Christi. Muitas das celebrações em Portugal e no mundo, são conhecidas pela sua designação latina. Em 1913, Amadeo de Souza-Cardoso compôs uma obra que representa a procissão de Corpus Christi na sua terra natal, Manhufe em Amarante.
Acima, a imagem dessa obra que faz hoje parte da coleção do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian.
A vida de Amadeo de
Souza-Cardoso foi breve mas intensa. Destacam-se dois momentos: os anos de
Paris (1906-1914) e os anos do regresso definitivo à sua terra, Manhufe
(1914-1918). Amadeo viveu entre estes dois lugares, Paris e Manhufe. Fazia
frequentes viagens de ida e volta, permanentemente insatisfeito e desejando
estar onde não estava.
Tal como Amadeo,
quantos de nós não tivemos um dia a cabeça em Paris e o coração em Manhufe e
vice-versa? Quantos de nós não vivemos vidas com a cabeça num lado e o coração
noutro a desejar estar onde não estamos? Muitos certamente, tal como Amadeo.
Claro que a nossa
Manhufe poderá ser Lisboa, Loures, o Porto, Coimbra ou Tavira, e a nossa Paris
pode ser Hollywood, Londres, Nova Iorque, Veneza ou Berlim, ou vice-versa,
pouco importa. O que importa é que desejamos uma vida mais vibrante,
surpreendente e sofisticada, como em Paris, mas sentimos simultaneamente que
pertencemos a um lugar seguro, familiar e habitual, um lugar como Manhufe.
Para melhor compreendermos que sentir é esse, que nos faz querer estar onde não se está, importa aqui lembrar António Joaquim Rodrigues Ribeiro, nascido em 1944 no lugar de Pilar, em Amares. Lugar de onde saiu com 11 anos, num comboio com destino a Lisboa e a um trabalho como marçano.
Toda a sua vida está
contada num livro intitulado “Entre Braga e Nova Iorque”. Ficou conhecido pelo
seu nome artístico: António Variações.
Entre as muitas
canções que compôs e escreveu, há uma que bem poderia ser o hino de todos
aqueles que sentem com igual intensidade pertencer e não pertencer a um lugar.
Ou melhor, o hino de todos aqueles que sentem com igual intensidade pertencer e
não pertencer a dois lugares. Ou melhor ainda, que sentem pertencer e não
pertencer a três, quatro, cinco ou a muitos lugares: “Estou além”, aqui na voz
de Camané:
A vida em Manhufe não
seria particularmente interessante. Todos estavam onde queriam estar e, caso
não estivessem, não se pensava mais nisso e seguia-se caminho. O mais do tempo
haveria de ser passado com os imutáveis afazeres quotidianos, apenas
intercalados de ano a ano pelos tradicionais momentos de celebração e de festa.
Vivia-se como habitualmente e ninguém queria cá saber de novas ideias e de modernices. Pensar nessas coisas não era algo que interessasse, ou sequer agradasse, às conservadoras gentes do lugar. As coisas eram o que eram, durante a semana trabalho, ao domingo juntava-se a família, punha-se o fato, ia-se à missa, almoçava-se melhorzinho e, se fosse caso disso, até se bebia do fino.
Todavia, mesmo onde e
quando tudo parece estar solidificado e ser inamovível, mesmo aí, há sempre
algo que se move e se metamorfoseia. Contra todas as probabilidades, foi
precisamente no rigoroso, longínquo e austero lugar de Manhufe, que surgiu um
dos primeiros grandes artistas modernos europeus: Amadeo Souza-Cardoso.
Claro que Amadeo não
poderia ficar preso para sempre à vida sonâmbula de Manhufe e à sua tradicional
forma de viver, tão mansa e quase vegetal. Para Amadeo, Paris era a cidade da
euforia, o lugar de todas as ruturas, artísticas e não só.
Vindo de um lugar triste
e acabrunhado e já depois de estar em Paris, escreve então numa carta o
seguinte: “Diverti-vos a valer, quem leva o Mundo a sério não passa dum idiota.
De que serve a tristeza, de que servem preconceitos? É uma tolice; nada
lucramos, tudo perdemos. Deve-se ser alegre, mas duma alegria sã, sem medo, que
desafie até."
Em Paris conhece e
convive com gente tão livre e arrojada como Modigliani, Brancusi ou o casal
Robert e Sonia Delaunay. Longe do austero Portugal e da família conservadora,
leva uma vida boémia. Apesar da vida mundana, Amadeo nunca descura a sua arte,
trabalhando intensamente na procura da originalidade.
Referindo-se ao seu estilo pictórico, Amadeo escreveu então: “Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos agora a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstraccionista? De tudo um pouco..."
De tudo um pouco…
Com efeito, a sua obra
não se esgota em formas abstratas e geométricas e em composições cromáticas.
Não é uma obra meramente intelectual ou conceptual, pois que há nela uma
provocativa sensualidade háptica. Há nela algo que dá vontade de mexer e tocar,
como podemos verificar na imagem abaixo, uma pintura de 1917 pertencente ao
Centro de Arte Moderna da Gulbenkian.
Em 1916 Amadeo de
Souza-Cardoso realizou as suas duas primeiras exposições em Portugal. Já tinha
exposto com grande sucesso em Paris e em Nova Iorque, mas esse foi o ano da
estreia em Portugal.
A primeira foi em
novembro no Porto. Em apenas doze dias foi visitada por 30.000 pessoas. Número
impressionante tanto para a época, como para os dias de hoje. A exposição
provocou um enorme escândalo e houve quem cuspisse e desse pancada nos quadros.
A imprensa nortenha de
então disse que Amadeo parecia ser “um moço inteligente e audaz”, mas que nele
se detectavam “graves indícios de alucinação artística”. Os críticos
descreveram a obra de Amadeo como sendo uma "arte de loucos, de
manicómio".
Em dezembro de 1916, a
exposição repetiu-se em Lisboa. Segundo os jornais lisboetas da época, por
comparação com o Porto, o ambiente “foi mais elitista e cativou, além da
imprensa, o entusiasmo do grupo de 'Orpheu'". Foi neste contexto que
Almada Negreiros escreveu que "a Descoberta do Caminho Marítimo p'rá Índia
é menos importante do que a Exposição de Amadeo de Souza Cardoso em
Lisboa".
Em 2016, um século
depois, a exposição de 1916 foi recreada no Porto e em Lisboa. No Porto
decorreu no Museu Nacional Soares dos Reis e em Lisboa na Fundação Calouste
Gulbenkian. Desta vez foi um grande sucesso de público e críticos em ambas as
cidades. Houve filas imensas para a visitar e Amadeo de Souza-Cardoso entrou
definitivamente no panteão das grandes figuras nacionais.
Mas o que de mais
importante sucedeu em 2016, foi que o Grand Palais em Paris, local onde há
muitas décadas se expõe apenas “la crème de la crème”, consagrou uma grande
exposição a Amadeo:
No entanto, Amarante,
concelho onde se situa o lugar de Manhufe, também não esqueceu Amadeo,
tendo-lhe dedicado um museu onde encontraremos algumas das suas obras.
Em conclusão, cem anos depois tudo acabou em bem, Amadeo é amado na sua terra natal e aclamado em Paris, está onde sempre quis estar: com a cabeça em Paris e o coração em Manhufe e vice-versa.
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