Estranhamente não há muitas obras literárias que nos
contem histórias de professores e de escolas. Em sentido oposto, há inúmeros
personagens literários que são médicos. Assim logo de repente, sem pensarmos
muito, lembramo-nos do Victor Frankenstein, do Dr. Jekyll de “O médico e o
monstro” e do pobre Charles, o legítimo esposo de Madame Bovary.
Se nos centrarmos em Portugal, lembramo-nos que muitos
dos personagens de António Lobo Antunes são também médicos e muitas das suas
histórias tem como cenário um hospital.
Polícias, detetives, espiões e criminosos das mais
diversas áreas, são também atividades amplamente representadas na literatura.
Mas mesmo profissões muito menos aventurosas do que essas, como por exemplo,
empregado de escritório, aparecem também frequentemente em muitos livros.
Pensemos por exemplo em Bernardo Soares, personagem de
“O Livro do Desassossego”, que passa a vida num escritório de um 4° andar da
Rua dos Douradores na baixa lisboeta, onde dia após dia nada acontece, a não
ser as nuvens a passar: “Nuvens... Existo sem que o saiba e morrerei sem que o
queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o
que a vida fez de mim, a média abstrata e carnal entre coisas que não são nada,
sendo eu nada também. Nuvens... Que desassossego se sinto, que desconforto se
penso, que inutilidade se quero! Nuvens... Estão passando sempre, umas muito
grandes…”
Um dos mais importantes romances italianos de sempre,
“A consciência de Zeno”, consiste no relato na primeira pessoa de um homem
(Zeno) da sua história de vida, na qual se limitou a ir andando. Deitado no
divã de um psicanalista, Zeno revê a sua história, a de alguém a quem não
aconteceu absolutamente nada de especial. Um pequeno empresário que esteve uma
vida inteira casado com uma mulher de quem logo à partida nem gostava nem
desgostava. As consequentes infidelidades de circunstância. Jantares com
amigos. Férias. Um trabalho que não lhe agradava particularmente, mas no qual
se ia safando e em que convivia com relativa indiferença com a mediocridade, o
fingimento e as imposturas daqueles que o rodeavam. Naquilo em que
verdadeiramente mais parece ter-se empenhado ao longo de toda a sua vida, foi
nas inúmeras tentativas falhadas que fez para deixar de fumar. Dito isto, é uma
história que vale muito a pena ser lida.
Um dos maiores sucessos internacionais de crítica e de público dos últimos anos, foi o livro de contos “Manual para mulheres de limpeza”, da lendária escritora norte-americana Lucia Berlin. A autora consegue através da sua escrita transformar o lado mais banal e rotineiro da vida em poesia. Não há nada em que não possa deter a sua atenção para ouvir a sua história: “…pouso a cabeça sobre o tampo de secretárias de madeira para as escutar, porque elas fazem barulhos, como ramos agitados pelo vento, como se ainda fossem árvores. Naquele tempo havia muita coisa a inquietar-me, como o que daria vida às velas e de onde viria o som das secretárias… tudo no mundo de Deus tem uma alma…”
Muitos outros exemplos poderiam ser apresentados, mas
aqui chegados, é normal que nos questionemos sobre o porquê de os professores
raríssimas vezes aparecerem como personagens e das escolas pouco servirem para
cenários literários. Em boa verdade, não nos ocorre qualquer resposta para esta
questão.
Claro que há algumas personagens ficcionais docentes,
mas são mais do tipo daquelas que aparecem no Harry Potter ou no filme “O Clube
dos Poetas Mortos”. Ou seja, são personagens com características claramente
excepcionais, sumamente excêntricos ou figuras profundamente inspiradoras.
As personagens docentes acerca das quais queríamos ler
as suas histórias, eram mais das do tipo das que tivessem características
absolutamente normais. Dessas que vão trabalhar todos os dias, que gostam ou
desgostam do que fazem, que têm as suas vidas para lá da escola, vidas que são
mais ou menos complicadas conformes os casos e que, para o bem e para o mal, lá
vão seguindo o seu caminho.
Queríamos que houvesse personagens docentes afins ao
Bernardo Soares de “O Livro do Desassossego”, a Zeno ou às descritas por Lucia
Berlin. Personagens cuja sua normalidade fosse relatada numa boa história.
Queríamos também que as escolas, os edifícios
propriamente ditos, constituíssem cenários para essas histórias. Há histórias
nas salas, nos corredores, nos gabinetes e nas portarias, há-as por todo o
lado.
Quando olhamos para um hospital, para uma esquadra de
polícia ou para um tribunal, imediatamente adivinhamos que há ali histórias sem
fim: dramas, aflições, alívios, alegrias, mortes e redenções. Num escritório,
numa pequena empresa ou na limpeza da casa, também as há. Não são tão
evidentes, mas estão lá, é só uma questão de alguém as escutar e de as contar.
Outro tanto, se passa numa escola.
Porque não uma escola, se até o mais vulgar e banal
prédio de habitação contém em si imensas possibilidades literárias. Bem sabemos
que em qualquer prédio há mexericos e diz-que-disse da vizinhança, mas não é
disso que falamos. Mexericos e diz-que-disse também os há em qualquer
escritório, hospital, tribunal ou escola, do que estamos aqui a falar é de
histórias literárias e não doutras.
Pensemos por exemplo no romance “A vida modo de usar”
de George Perec. Nesse livro o autor apresenta-nos um conjunto de micronarrativas.
Cada uma delas conta-nos as distintas histórias dos vários habitantes dos
diferentes apartamentos de um prédio de habitação em Paris.
As histórias individuais cruzam-se com as das relações
entre vizinhos, com listas de compras do supermercado, contas da eletricidade e com muitas outras coisas que aparentemente são banais, mas que todas juntas
formam um fascinante mosaico.
Nós em agosto de 2022, neste mesmo blogue onde agora
nos lêem, fizemos uma gracinha, contámos a história de uma professora em férias
dividida em dez capítulos. O folhetim de verão cuja personagem principal era a
Professora Anita, não era uma história mesmo a sério e muito menos era
literatura, como já dissemos era uma mera graça, ainda assim, se quiserem dar
uma vista de olhos, encontram no link abaixo uma publicação que contém todos os capítulos deste folhetim do verão passado.
https://ifperfilxxi.blogspot.com/2022/09/o-regresso-as-aulas-que-extase.html
Se não quiserem perder tempo com brincadeiras e porventura quiserem ler uma das poucas grandes histórias literárias sobre um professor, o que vos aconselhamos é o mundialmente conhecido romance de Virgílio Ferreira “Aparição”.
A narrativa inicia-se com a chegada a Évora de um novo professor no início de mais um ano letivo. Alberto Soares, o professor, cedo se relaciona com o Doutor Moura, antigo colega do seu pai, e com a sua família, nomeadamente, com a sua filha Sofia, de quem se tornará explicador de Latim, e também com as suas irmãs Ana e Cristina.
Sente-se atraído por Sofia e Ana, as duas irmãs mais
velhas da família, com as quais se envolve, mas Sofia é demasiado perigosa e
Ana é demasiado frágil. Mais à frente na história, acaba por ficar deslumbrado
por Cristina, a irmã mais nova da família, ao ouvir a forma maravilhosa como
esta toca piano. Tudo acaba mal e no ano letivo seguinte Alberto é colocado
noutra escola, numa outra cidade.
Virgílio Ferreira, para além de ter sido um dos maiores escritores portugueses do século XX, foi professor toda a vida. Primeiro no Liceu de Bragança, tendo depois passado um ano pelo Liceu de Évora, onde aproveitou o tempo para escrever “Aparição”, fixando-se de seguida para o resto da sua vida no Liceu Camões em Lisboa.
Em 1992 recebeu o mais importante prémio literário dos países de língua portuguesa, o Prémio Camões. Morreu no dia 1 de março de 1996, em sua casa, em Lisboa, situada na freguesia de Alvalade.
E pronto, terminamos aqui a nossa história de hoje…
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