Continuamos a viajar sem sair do lar, só a sonhar. Estas nossas viagens são imaginadas: existem e não existem. Nesse contexto, que tal viajarmos por um sítio, que também ele existe e não existe? É isso o que vamos fazer neste quinto episódio da série “Como fazer turismo sem sair de casa. O nosso destino de hoje é Espanha.
Na capa temos uma gravura do pintor espanhol Francisco Goya (1746-1828) intitulada “O sonho da razão produz monstros”. Há muitas interpretações possíveis para esta célebre gravura, contudo, preferimos aquela que nos diz, que se porventura “sonhamos” em agir sempre pela razão, ou seja, sensatamente, com conta, peso e medida e de um modo realista, o mais que conseguiremos é produzir monstros.
O “sonho” da razão é a morte de todos os outros sonhos, pois a vida é sobretudo feita de desrazões, de ilusões, de desejos e de imaginações. Espanha é por excelência o lugar de todos esses outros sonhos, que não são os da razão. Espanha é mais um país desejado e sonhado, do que realmente existente.
Portugal, pelo contrário, é real e concreto, para o bem e para o mal, existe. Espanha, apesar de estar aqui mesmo ao lado, é tão real ou irreal como um desejo. Razão principal pela qual, do lado de cá da raia, houve sempre grande desconfiança relativamente ao que haveria do lado de lá: de Espanha nem bom vento, nem bom casamento.
Não se sabe bem se Espanha é mesmo uma realidade concreta ou se é uma coisa apenas ansiada por príncipes e imperadores. Bascos, Catalães, Galegos e outros mais, nunca se dizem espanhóis, por consequência, talvez Espanha exista, mas a sua unidade tenha na génese qualquer coisa de um desejo platónico, que faz com que permanentemente oscile entre o ser e o não-ser, entre o real e o imaginado.
Viajemos então. Comecemos pelo início de Dom Quixote: “En lugar de La Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo…” (Num lugar de La Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo…).
Não é o sensato, avisado, prudente e limitado Sancho Pança, o personagem maior da literatura espanhola, mas sim Dom Quixote, o cavaleiro que permanentemente se aventura nos interstícios existentes entre o real e o imaginado.
A Dom Quixote, não é a limitada realidade concreta o que mais lhe interessa. Mas isso não faz dele um louco, faz sim dele um poeta e um sonhador. E é por assim ser, que luta contra moinhos de ventos e ama a sua doce Dulcineia.
Para entendermos a alma de Espanha, temos de compreender o modo como Dom Quixote transforma a pobre e triste realidade concreta em poesia, em coisa imaginada ou sonhada. Nada melhor para o percebermos, do que a passagem abaixo da obra de Cervantes, na qual se fala de Quixote e Dulcineia:
“Crê-se que, num lugar próximo do seu, havia uma lavradora jovem muito bem parecida, por quem ele, um tempo andou apaixonado, ainda que, segundo se sabe, ela jamais o soubesse nem ele lhe tenha dado conta disso.
Chamava-se Aldonza Lorenzo, e a esta lhe pareceu ele por bem dar-lhe o epíteto de senhora dos seus pensamentos; e, procurando nome que não desdissesse muito do seu e que se aproximasse e encaminhasse ao de uma princesa e grande senhora, veio a chamar-lhe Dulcineia de Toboso, porque era natural de Toboso: nome, que lhe parecia, musical, peregrino e significativo, como todos os demais que a ele e às suas coisas havia posto.”
A génese da alma espanhola é essa oscilação entre Sancho Pança, que representa a realidade concreta, e Dom Quixote, que representa o ideal, o sonhado e o poético. Esse baloiçar entre o que existe e o que não existe, é coisa que em Espanha se nota por todo o lado.
A própria capital, Madrid, foi erguida num sítio onde praticamente nada existia. No século XVI, Filipe II de Espanha teve uma visão e inesperadamente, contra tudo e contra todos, decidiu transferir a capital do reino situado na bela, próspera e histórica cidade de Sevilha, para o lugarejo que então era Madrid.
Só no século XIX é que Madrid começou a crescer e a ganhar alguma relevância económica e comercial. Até então existia, era a capital de um imenso império, mas era como se não existisse. Era um lugar quase irreal, onde pouco mais havia que casebres e um improvável palácio, que a todos parecia de sonho.
Prossigamos a nossa viagem por Espanha, que é coisa mais sonhada e desejada, do que propriamente concreta. Vamos agora ao teatro.
Mesmo quem nunca foi ao teatro, mais que não seja de nome, há de conhecer os grandes dramaturgos europeus, como por exemplo, Gil Vicente, Shakespeare ou Molière. Dito isto, fora de Espanha, poucos saberão quem foi o grande Calderón de la Barca, o que é pena.
Calderón de la Barca (1600-1681) escreveu a melhor, mais estranha e extraordinária peça de todo o teatro espanhol, “A vida é um sonho”. A peça conta-nos as aventuras de Segismundo, o filho renegado do rei da Polónia, que ao nascer, devido a uma profecia, foi imediatamente trancado e acorrentado numa torre. O seu único contato com o mundo é através do seu guardião, um fiel servo do seu pai.
Encerrado na torre, Segismundo cresce acreditando que a realidade é apenas o pouco que observa em seu redor. Muitos anos depois, o rei seu pai arrepende-se. Segismundo é adormecido e libertado. Acorda no palácio real. Dizem-lhe que é um príncipe e que tudo aquilo que antes lhe havia acontecido, teria sido apenas um sonho.
Segismundo começa a agir como um príncipe, mas à medida que passam os anos, provoca cada vez mais desmandos. Consequentemente, o rei ordena que se realize a operação inversa. Segismundo é adormecido e acorda novamente trancado e acorrentado na torre. Dizem-lhe então que o tempo em que viveu como um príncipe, foi apenas um sonho.
Ouvem-se ecos da Alegoria da Caverna de Platão na cena final:
Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que em outro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.
Vamos até à cidade de Toledo, que Cervantes descreveu como “a glória de Espanha”. É lá que nasce o Tejo.
Toledo é conhecida pela sua esplendorosa catedral e pelas suas sinagogas e mesquitas. Durante séculos e séculos, cristãos, judeus e muçulmanos aí viveram em harmonia. A herança que deixaram é vasta, razão pela qual Toledo é visitada por milhões de turistas todos os anos.
Um dia, algures no ano de 1577, chegou a Toledo um pintor vindo da ilha grega de Creta. Chamava-se Doménikos Theotokópoulos, mas todos o conhecem como El Grego.
Toledo é uma cidade que fica na serra, a sua beleza é fria, rígida e austera. No inverno é gelada e é toda ela feita de escuras pedras. Com a chegada de El Grego, como que foi incendiada pelas chamas de um desejo. El Grego imaginou-a como se as suas ruas, igrejas e muralhas dançassem, fossem fogo.
Na sua pintura, as duras pedras como que se contorcem e agitam. As nuvens sob Toledo tomam estranhas formas, assim como os campos. O que é sólido, mineral, real e concreto, transforma-se, em El Grego, em algo que aparenta ser irreal e etéreo.
El Grego veio de Creta para Toledo, para ser o primeiro grande pintor espanhol dos muitos que se lhe seguiram. Picasso, por exemplo, não teria existido, se quinhentos anos antes dele, El Grego não tivesse existido.
É precisamente a propósito dessa improvável mas profunda afinidade, que atualmente está no Museu del Prado uma exposição intitulada “Picasso, el Greco y el cubismo analítico”:
Sigamos para a última etapa desta nossa viagem a Espanha, “Mujeres al borde de un ataque de nervios”, filme de 1988, realizado por Pedro Almodóvar. E porque estarão as mulheres de Almodóvar à beira de um ataque de nervos? A razão é simples foram “atrapadas” pela realidade.
As várias personagens femininas da película viviam “La illusión”. A ilusão de um namoro, de uma profissão, da compra de casa, de um casamento e de outras coisas mais. Subitamente, a realidade cai-lhes em cima e não sabem como lidar com ela, começam todas a agir de um modo completamente disparatado. No fundo são mulheres de Espanha. Mulheres que de sensatas nada têm e cujas almas oscilam entre a imaginação, os sonhos, os desejos e a realidade concreta.
Não por acaso, Pepa, a personagem principal faz dobragem de filmes, encarnando com a sua voz outras personagens de ficção. Na cena que abaixo vos deixamos, Pepa faz a dobragem de uma cena de um western norte-americano “Johnny Guitar”. O diálogo decorre entre Johnny e Vienna, que se reencontram após uma longuíssima separação:
JOHNNY: A cuántos hombres has olvidado?
VIENNA: A tantos como tú mujeres.
JOHNNY: No te vayas!
VIENNA: No me he movido.
JOHNNY: Dime algo bonito.
VIENNA: Claro. Qué quieres que te diga?
JOHNNY: Miénteme. Dime que me has esperado todos estos años.
VIENNA: Te he esperado todos estos años.
JOHNNY: Dime que habrías muerto si yo no hubiera vuelto.
VIENNA: Habría muerto si tú no hubieras vuelto.
JOHNNY: Dime que me quieres todavía, como yo te quiero.
VIENNA: Te quiero todavía, como tú me quieres.
JOHNNY: Gracias. Muchas gracias.
E pronto, terminamos aqui mais esta viagem. Não nos venham dizer que não viajámos de verdade, pois o que Espanha nos ensina é que os sonhos, os desejos e a imaginação são realidades. Johnny Guitar ensina-nos que por vezes, perante uma mentira, a única resposta certa é “Gracias. Muchas gracias”.
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