Serão poucos os que
conhecerão a extraordinária história de vida e morte de Anastácio, um rapaz de
Alcanena que se viria a tornar doutor. Nasceu ainda no século XIX e viveu
durante largas décadas, tendo falecido a uma distância imensa de sua casa, a
mais de quatro milhares de quilómetros em boa verdade. Por destino ou
fatalidade, caiu morto pouco depois de ter chegado a uma das mais belas cidades
à face da terra: São Petersburgo.
Podia ter escolhido
morrer em Veneza, Paris ou Constantinopla, todas elas igualmente lindas
cidades, acabou por o fazer em São Petersburgo, o que também não lhe ficou mal.
Anastácio escolheu
viver uma vida inteira na solidão, foi uma opção. Mas isso não significa que
não tivesse quem o acompanhasse, significa simplesmente que preferia outras
companhias, que não as das gentes. Ao invés de humanos convívios, preferia
viver exclusivamente entre coisas belas: porcelanas vindas da China, nobres
móveis de séculos transatos e pinturas donde se vissem os verdes campos, o
vasto mar e as nuvens espalhadas pelos céus.
Oriundo de uma família
endinheirada de Alcanena, veio para Lisboa estudar e fez-se médico,
oftalmologista mais em concreto. Rapidamente ganhou fama e tornou-se um dos
mais conceituados especialistas do seu tempo. Tratava de gente tão importante
como um dos homens mais ricos do mundo, Calouste Gulbenkian. Senhor que tinha
feito do Hotel Aviz, situado na Avenida Fontes Pereira de Melo, no local onde
está hoje o Sheraton, a sua residência permanente. A casa de Anastácio ficava a
uns poucos metros daí e ainda hoje lá está para quem a quiser visitar.
Quando não estava em
serviço, Anastácio dedicava-se a viajar pelo mundo. Não procurava destinos
exóticos nem paisagens sublimes, procurava tão-somente visitar os tesouros
artísticos dos grandes museus do mundo, como os do Louvre em Paris, os do Prado
em Madrid, os da Galleria degli Ufizzi em Florença ou os do Metropolitan em
Nova Iorque.
O único dos grandes
museus do mundo a que lhe estava vedado o acesso era o Hermitage de São
Petersburgo. Estava-o porque na altura Portugal não tinha relações diplomáticas
com a URSS e era praticamente impossível obter um visto de entrada em
território soviético com um passaporte português.
Durante anos e anos
Anastácio moveu influências e tentou obter um visto das autoridades soviéticas
de todas as maneiras possíveis, sempre sem sucesso. Mas para além disso, a PIDE
também não tinha particular simpatia por quem fizesse viagens turísticas a um
país comunista.
Uma vez lá conseguiu
infiltrar-se num grupo excursionista francês, que partindo de Paris passaria
por São Petersburgo (que então se chamava Leninegrado) e que aí permaneceria
durante um só dia.
Entrou na cidade e
dirigiu-se imediatamente ao Hermitage, mas teve tanta infelicidade, que nesse
dia era feriado e o museu estava encerrado. Voltou a Lisboa amargurado.
Tinha já setenta e
sete anos de idade, quando finalmente lhe concederam um visto para que pudesse
ir a São Petersburgo visitar o Hermitage e os seus esplendorosos tesouros.
Visitou-o longamente. Depois recolheu ao seu quarto de hotel e morreu.
Abaixo uma imagem da
escadaria do átrio de entrada do Hermitage, que antes de ser museu, foi o
palácio de inverno dos czares. Era o favorito dos czares, ainda que o palácio
de verão (Peterhof) fosse mais magnificente e tivesse lindas vistas para o Mar
Báltico, ficava a uns bons trinta quilómetros de São Petersburgo, assim um
tanto ou quanto para o fora de mão.
Quem longamente quiser
viajar pela imperial história do Hermitage, pode fazê-lo através do filme de
Alexandr Sokurov, “A arca russa”:
Nós há muito que temos
o hábito de ir frequentemente com os nossos alunos a museus. Gostaríamos de ir
ao Louvre, ao Prado ou ao Hermitage, não podendo ser, vamos ao da Gulbenkian,
ao das Janelas Verdes, ao do Oriente ou ao do Centro Cultural de Belém.
Sendo certo que nunca
tivemos tantas dificuldades para os visitar como Anastácio teve com o
Hermitage, é igualmente certo que nalguns deles podíamos ter sido melhor
acolhidos. Não que alguém nos tenha feito cara feia ou demonstrado má vontade,
nada disso, no entanto, há procedimentos estabelecidos para as visitas das
escolas que são simplesmente aborrecidos.
Comecemos pelo
princípio. Quando em Portugal vamos à bilheteira de um museu para pagarmos as
entradas dos alunos de uma ou mais turmas, ou temos sorte e não há fila, ou
temos azar e há uma fila e aguardamos dez ou quinze minutos, quando não mais,
pela nossa vez.
Neste entretanto, os
alunos impacientam-se enquanto esperam. Quando finalmente ingressamos no museu,
já há uma certa agitação no ar. Estranhamos que os serviços educativos dos
museus não saibam que as crianças e jovens são mais irrequietos e impacientes
do que os adultos, sobretudo quando estão todos juntos, razão pela qual, não
fazia nada mal que tivessem prioridade relativamente aos turistas e a outros
visitantes de maior idade.
Estranhamos tanto
mais, quanto noutros locais do mundo, há essa clara percepção. Por exemplo, em
Londres, na Tate Modern e na Tate Britain, há um “Schools Welcome Desk”. As
escolas são recebidas à parte dos restantes visitantes e orientadas sobre a
visita, seja esta guiada, o que não é o mais comum, ou completamente livre, que
é o mais frequente.
Na Tate Modern há
também cacifos exclusivos para as escolas, assim como casas de banho e um
refeitório. Há também cuidado para que não haja aglomerações de visitantes em
certos espaços, de modo a que os alunos possam desfrutar tranquilamente da sua
visita.
Se tivéssemos
verdadeiramente começado pelo princípio, teríamos de referir que quer na Tate
Modern, quer na Tate Britain, como aliás em todos os outros museus públicos
britânicos, as entradas para as escolas são gratuitas, algo que por cá, ainda
só ocorreu a uns poucos.
Mas as diferenças não
se ficam por aqui. Não dizemos aos nossos leitores para consultarem os
conteúdos destinados a alunos e professores dos sites dos principais museus
portugueses, porque só os iríamos fazer perder tempo. O mesmo já não sucederá
se consultarem os sites dos principais (e de muitos outros) museus
internacionais.
Continuemos pelos
museus da Tate. O site desses museus tem imensos conteúdos concebidos expressamente
para crianças e jovens, pesquisem em Tate Kids. Não é nada arriscado afirmar-se
que há mais conteúdos para alunos de todas as idades só na secção Tate Kids, do
que no conjunto de todos os sites de todos os museus portugueses. Duvidam? É
irem verificar.
Queremos destacar um
conteúdo da Tate Kids do qual particularmente gostámos. Evelyn Shlomow é uma
rapariga de 11 anos, no entanto, organiza pequenas exposições na Tate Britain e
tem um programa radiofónico semanal em que analisa as obras de arte em
exposição. Para além disso, convida os mais consagrados artistas internacionais
para serem por si entrevistados nesse mesmo programa, que é transmitido através
do site dos museus.
Já agora, só para
realçar mais uma pequena diferença, os museus da Tate não se limitam à capital
do país, em Londres há Tate Modern e a Tate Britain, mas a norte há a Tate
Liverpool e a sul há a Tate St. Ives.
Deixamos-vos uma
entrevista com Evelyn Shlomow em que nos fala do seu trabalho, com 11 anos sabe
mais de como se pode mostrar arte a crianças e jovens de que muitos adultos que
conhecemos:
https://www.tate.org.uk/kids/explore/kids-view/interview-11-year-old-curator
Vamos continuar por
Londres. Já estão fartos de Londres? Não estejam. Como algum dia disse o grande pensador Samuel Jonhson, “When a
man is tired of London, he is tired of life; for there is in London all that
life can afford.”
Se antes falámos dos conteúdos para crianças e jovens que existem nos sites dos museus, falemos agora dos conteúdos que existem para docentes. Com certeza que já adivinharam que não vale a pena perder grande tempo com os sites dos museus portugueses, certo? Sim, claro, há uma coisinha ou outra, mas nada de particularmente estimulante. Mas se forem espreitar o site dos museus da Tate, percebem logo como é que se fazem coisas a sério e não apenas para inglês ver:
https://www.tate.org.uk/art/teaching-resource
Se alguns dos nossos
leitores forem do tipo de pessoas que prefere as coisas à grande e à francesa,
também temos. Mesmo sem ter de ir até Paris, podem por exemplo espreitar os
sites do Centre Pompidou, o que não falta são conteúdos destinados a alunos e professores.
Nesse site, entre
muitas outras coisas, poderão encontrar os Kits "L'espace scolaire".
São Kits pedagógicos disponíveis para descarga digital com propostas inovadoras
que estimulam a criatividade dos alunos através de atividades transdisciplinares
que incluem a música, a dança, o design e arte. É caso para se dizer, a cada
país os Kits que merece.
https://www.centrepompidou.fr/fr/offre-aux-professionnels/enseignants
Mais uma coisita, em
Paris, no Centre Pompidou, há também generosos espaços destinados a receber
crianças e jovens alunos, nomeadamente, o “Atelier découverte” e a “Galerie des
enfants”.
Só mais uma outra
coisita, o Centre Pompidou também não se limita à capital, ainda há uns poucos
anos abriu uma nova sede no leste do país, na cidade de Metz. Coisa semelhante
fez o Louvre, que decidiu abrir um museu numa antiga cidade mineira em grande
declínio económico. Desde que o Louvre aí tem uma sucursal, Lens
rejuvenesceu-se.
E que é feito do
Anastácio, perguntarão os nossos leitores. O Anastácio legou ao estado
português a sua casa bem como todo o seu rico espólio, composto por peças de
mobiliário, de porcelana chinesa e de pintura naturalista. Desde 1980 que
funciona como um museu.
Pesquisámos na internet a casa do Anastácio e não encontrámos nenhum site, apenas uma página no Facebook e um Blog. A última mensagem que consta no dito blog é de abril de 2021, é uma Newsletter.
As visitas para
escolas estarão ou não estarão a ser realizadas e terão ou não terão um tema,
não se percebe bem.
Citamos-vos uma frase
do blog da casa do Anastácio relativamente às visitas destinadas às escolas: “Aqui
não há guiões, há visitas culturais que vão de encontro às necessidades de quem
nos procura.” Logo abaixo desta frase, contradizem-se apresentando
várias propostas com visitas temáticas. É cómico. Em qualquer dos casos, a
existirem as visitas, custam 3,70€ por aluno, não se pode dizer que seja
barato.
Num extenso relatório realizado pela Direção Geral do Património Cultural há cerca de três anos, conclui-se que a casa do Anastácio não é visitada por quase ninguém e muito menos por crianças e jovens em idade escolar. Porque será, perguntamos nós?
Se alguém quiser ler
um extenso relatório que não serviu absolutamente para nada, eis aqui uma
esplêndida oportunidade:
https://www.patrimoniocultural.gov.pt/static/data/publication_pdfs/CMAG_092019_digital.pdf
A Câmara Municipal de
Lisboa implementou há uns anos o programa passaporte escolar, que para além de
fornecer o transporte de ida e volta para a escola, permitiria também aos
alunos aceder gratuitamente a um vasto leque de museus. A ideia é boa e por
vezes funciona, noutras vezes ou não há transporte, ou as marcações tem de ser
feitas com largos meses de antecedência, ou a entrada só é gratuita em certas
datas específicas, ou as vagas já estão todas as preenchidas e ou isto ou
aquilo. Com o passaporte escolar não é tão difícil de entrar num museu como foi
ao Anastácio entrar na URSS com um passaporte português, mas também não é
fácil.
Em síntese, por tudo o
que fica dito, uma coisa é óbvia, se ao longo de todos estes anos, não fossem
as escolas e os professores a esforçarem-se para levarem os alunos a museus,
não seria certamente pelo esforço dos museus que eles lá iriam. Se não fossem as
escolas e professores, a maior parte viveria uma vida inteira e morreria sem ir
a um museu.
Nós cá não desistimos. Por isso levámos os nossos alunos a visitar a exposição "Histórias de uma coleção" na Fundação Calouste Gulbenkian. Deixamos-vos o guião dessa visita.
Guião "Tu és uma coleção de histórias, de Metamorfoses e de Espelhos"
https://drive.google.com/file/d/1OsTnKyWyHnT972dNA34ZnbFQmbqX6o3j/view?usp=sharing
Muito bom. Eu que trabalho na área do Património Cultural, Museus e Monumentos, concordo totalmente convosco. Estão uma desgraça os nossos serviços educativos
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