E pronto, agosto está no fim, e nós chegámos assim à vigésima e última viagem desta série “Como fazer turismo sem sair de casa”. Não hesitámos e no lar ficámos. Recolhidos durante as férias viajámos sem ter de tratar de passaportes, de bagagens, de reservas e doutras coisas sérias. Também passámos por destinos exóticos sem nos chatearmos com bactérias, nem necessitarmos de regimes macrobióticos. Foi tudo bom. Findamos com um destino tropical e muito musical: Cuba.
Cuba não é apenas um destino turístico com belas praias tropicais, é muito mais que isso. E entre o muito mais que é, está o ser um autêntico viveiro de estilos musicais. Foi principalmente em Havana, mas também noutras regiões cubanas, que nasceu aquilo a que chamamos música latino-americana. O chá-chá-chá, a salsa, a rumba e o mambo são tudo géneros vindos de lá.
Aos ritmos e tons nativos juntaram-se os africanos, a ambos acrescentaram-se os europeus, e foi assim que em Cuba se criaram sons originalmente só seus, mas que depois se espalharam aos quatro ventos por todo o continente latino-americano.
Era altamente improvável que as elegantes e eruditas melodias executadas em palácios reais e em nobres salões do velho continente, atravessassem o Atlântico e se fundissem tão bem com os cânticos e lamentos dos escravos africanos, mas de facto, foi isso o que sucedeu.
A maior parte dos estilos musicais nascidos em Cuba são exuberantes e, por consequência, dançantes. No entanto, há um que de exuberante nada tem: o bolero. O seu ritmo é lento e as suas letras e melodias são onde a solidão, as nostalgias, as dores e o fracasso de muitos amores se cristalizam nas vozes dos cantores.
Os bares e lugares do bolero são sítios tristes e solitários, onde se vai por “las noches envenenarse con el humo y el olor rancio del aire acondicionado y la bebida, sólo para oír a las cantantes”.
Em cada bolero canta-se um desencontro, uma ausência ou um abandono. Lamenta-se o que podia ter sido e não foi e tudo o que se perdeu ou ficou para trás. No seu conto “Ella cantaba boleros” (extraído do seu grande romance “Três Tristes Tigre”), Guilhermo Cabrera Infante capta como ninguém essas noites de Havana, em que pelos bares há seres quebrados por uma fracassada paixão hiperbólica, da qual só lhes resta uma melancólica e alcoólica desesperada espera por quem já não vem.
Tais seres não estão ali presentes apenas porque sim, para que passe a noite e chegue o dia, estão antes numa espécie de psicoterapia. As palavras de um bolero não são tão-somente para serem interpretadas por quem as canta, são mais do que isso, interpretam também quem as escuta. Espelham e encarnam o sentir de quem as ouve: Ese bolero es mío porque su letra soy yo.
Assim sendo, e mesmo que por ora sejam seres quebrados e tenham de ir buscar alento num copo profundo, um bolero consola-os e diz-lhes claramente que o passado está moribundo. É no fundo uma psicoterapia cantada e musicada, que aos poucos lhes faz ver que não vale a pena uma tal letargia, que pela sua frente há mais vida e mundo.
Se porventura os personagens dos boleros andassem a estudar e tivessem de fazer um teste ou um exame escolar, o mais certo era chumbarem, pois é muita a frequência com que hesitam ou alegam desconhecer, duvidar ou não saber.
O primeiro bolero a ultrapassar a fronteiras de Cuba e a tornar-se um grande êxito internacional chamava-se “Cómo fue”. Foi composto nos anos 50 por Benny Moré, “el bárbaro del ritmo”, que o interpretava conjuntamente com o famoso trompetista Alfredo ‘Chocolate’ e a sua Banda Gigante.
O que é inegável, é que logo nesse momento surge uma pergunta para a qual não haverá nenhuma resposta: “Cómo fue? No sé decirte cómo fue. No sé explicarme qué pasó, pero de ti me enamoré”.
O personagem ainda nos adianta várias hipóteses de resposta à questão ao longo da canção, “Fueron tus ojos o tu boca. Fueron tus manos o tu voz”, mas o facto é que não se decide por nenhuma delas e ficamos sem saber se foram os olhos, a boca, a voz ou as mãos. Em qualquer dos casos, alguma coisa foi, disso não restam dúvidas. Aqui vos deixamos a prova numa antiguíssima aparição de Benny Moré na televisão:
Um dos mais conhecidos boleros cubanos intitula-se “Quizás, quizás, quizás”. Provavelmente já toda a gente o ouviu numa ou noutra ocasião. Contudo, talvez não se tenham focado neste nosso ponto, ou seja, que também nesta canção, há bem mais que uma questão que fica sem solução.
“Siempre que te pregunto, que cuándo, cómo y dónde, tu siempre me respondes quizás, quizás, quizás”. Ora vamos lá ver uma coisa, será que custava assim tanto responder com rigor e exatidão a quando, como e onde?
Sendo a resposta de cada vez três vezes talvez (quizàs, quizás, quizás), não admira que haja desencontros e que nos amores os cubanos andem constantemente com uma mão à frente e outra atrás.
Aqui vos deixamos uma interpretação sobre a qual não há dúvidas algumas, os imensos Ibrahim Ferrer e Omara Portuondo:
Para perceberem que estas dúvidas, ausências de respostas, de soluções e constantes hesitações não se limitam às relações, apresentamo-vos um último bolero. O problema agora tem a ver com direcções.
O tema intitula-se “Chan Chan”. É uma outra canção célebre do repertório cubano e o que nela se passa é o seguinte: alguém anda permanentemente de um lado para o outro e não se decide a ficar de vez em lugar algum: “De alto Cedro voy para Marcané. Llego a Cueto, voy para Mayarí”.
Aqui fica a canção no registo ao vivo dos Buena Vista Social Club, acompanhado com imagens da indubitavelmente bela e formosa cidade de La Habana:
E pronto, agora sim, não há mais dúvidas nem hesitações, é o fim. Vamos voltar a sair do lar para irmos trabalhar, pois que as férias estão prestes a terminar. Regressados ao emprego, vamos finalmente poder voltar a andar a passear e a fazer turismo fora de casa.
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