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Amor é... uma bela chispalhada


Conservas em escabeche a inteligência? Esta inopinada questão é de Camilo Castelo Branco, que num jornal, a dirigiu a um conhecido cavalheiro seu contemporâneo, tendo como objetivo colocar publicamente em causa as capacidades cognitivas do dito senhor. Num outro momento, discorreu assim o grande escritor: “Ilustre paspalhão, pasmo dos orbes, nata da estupidez, álcool dos parvos”.

Estas são apenas duas singelas passagens que ilustram o tipo de palavreado que Camilo usava nos debates públicos com os seus adversários. No entanto, havia também quem não se ficasse e lhe respondesse à letra. Um nobre cidadão desse tempo afirmou que Camilo “estava tão arredado de ser literato, que, sendo camelo, escreve o seu nome com i”.
Todas estas finezas são de outros tempos, ou seja, de finais do século XIX. No século XXI, mais concretamente nas últimas duas semanas, tem havido no Porto larga polémica a propósito de uma estátua de Camilo Castelo Branco, que está instalada numa das principais praças da cidade.
O debate azedou e tornou-se de âmbito nacional e não apenas local. Posto isto, de norte a sul, toda a gente desatou a opinar sobre o assunto. Há quem considere a estátua de mau gosto e/ou imoral, e portanto a queira retirada do espaço público. Há igualmente quem pense exatamente o oposto e, por consequência, queira que a estátua à vista de todos se mantenha.
Comparado com os apimentados debates em que Camilo se envolveu , todo o atual debate nos parece um tanto ou quanto insosso, não fazendo por tal jus ao escritor.
Nós não vamos fazer nenhuma consideração acerca desse controverso assunto, contudo, a presente polémica é uma excelente ocasião para falarmos de certas outras coisas e sobretudo de Camilo Castelo Branco.

Como todos sabemos, Camilo é um autor canónico da literatura portuguesa, sendo a sua obra mais célebre o romance “Amor de perdição”. Essa famosa obra é uma espécie de Romeu e Julieta à portuguesa. Os estudiosos consideram-na um dos expoentes do romantismo nacional, todavia, estamos cá desconfiados que os nossos românticos, e o Camilo em particular, não são exatamente iguais aos de outras paragens.
Se é certo que a narrativa de “Amor de perdição” é de faca e alguidar e de fazer chorar as pedras da calçada, também é certo que enquanto os personagens românticos de outros povos são muito dados a suspiros, a juras de amor eterno, a enlevos celestiais e a outros sentimentos etéreos, por contraste, os camilianos são mais dados às carnes, não só às mais óbvias, mas também àquelas que lhes aparecem no prato.
Um outro romance de Camilo Castelo Branco intitula-se “Coração, cabeça e estômago” e só por aí, começamos logo a perceber de que cepa são feitos os seus (e os nossos) heróis românticos. Entre nós, os elevados sentimentos são coisas muito bonitas, mas lá por causa disso, não vamos descurar a paparoca para o jantar.
Noutras literaturas abundam personagens cujas contrariedades amorosas os levaram a jejuar. Não raras vezes, o amor contrariado retirava-lhes o apetite e ficavam com fastio. Mas isso não é do nosso feitio, andar de barriga vazia e passar mal, não é coisa que nos apraz. Vejam por exemplo esta “romântica” descrição de uma refeição de Camilo e digam lá se temos ou não razão:

“Abancados à tosca mesa, cuja toalha tresandava ao fartum do azeite e bacalhau, apareceu a travessa fumegante com duas galinhas, sobre as quais se levantava uma pirâmide de três salpicões, assentes num grosso lardo de toucinho.”

Camilo não era pessoa para se perder nem com as elegâncias, nem com os requintes próprios de outros países nos quais os gestos românticos são mais sofisticados e delicados.
Quer no amor, quer na cozinha, só lá ia com abundante carnuça e não com espiritualidades. Em certo sentido, é um provinciano que desdenha das novidades da culinária francesa, como exemplo disso, leia-se esta passagem:

“Quem come francêsmente cria alma; corpo é que não. Aquele magro molho em que boiam cascas farináceas não entulha os ductos da intelectualidade. A víscera vital por excelência não escoiceia o vizinho de cima, como sucede nos casos em que o esófago arfa sacudido pelo estômago repleto de fibrina. O coração agita-se docemente quando o novo quilo se está elaborando”.
Em síntese, é uma evidência que o escritor não crê grandemente nas subtilezas dos sabores e, por extensão, dos amores. Acredita sim nas luxúrias da proteína e nas virtudes substantivas do colesterol.
No que o escritor também não crê, é que a inteligência sirva para grande coisa no que à felicidade amorosa diz respeito. Um dos seus mais conhecidos conselhos é o seguinte: “Se queres ser feliz abdica da inteligência.”
Em boa verdade, Camilo associa o pouco comer às almas delicadas e mais dadas a coisas espirituais. No entanto, não é tanto as almas que lhe interessam, mas mais as carnes. É tanto assim, que até ironiza sobre donzelas Inteligentes, sensíveis e com pouco apetite:

“Segui-a; vi-a jantar à mesa redonda do Hotel Portuense. Comeu apenas uma asa de borracho e meia banana. Que estômago tão fino! É que ali está um coração imenso, cheio de ternura e com mais poesia que um livro de versos.”
Em resumo, uma vez lidos estes exemplos de passagens de obras de Camilo Castelo Branco, percebemos claramente que o tom da sua escrita, quer a ficcional, quer a polemista não era particularmente refinado e sério. Muito pelo contrário, Camilo não se coibia de ironizar, de brincar e de satirizar. 

Na recente polémica relativa à estátua que o homenageia, toda a gente usou um tom demasiado a sério. Talvez não fosse descabido que lessem a passagem abaixo de Camilo Castelo Branco.

"A seriedade é uma doença, e o mais sério dos animais é o burro. Ninguém lhe tira, nem com afagos nem com a chibata aquele semblante cabido de mágoas recônditas que o ralam no seu peito."

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