Não era nada expectável, que quem viveu uma vida quase inteira como um rebelde, um provocador, um grande pecador e chegou mesmo a ser preso por atentado ao pudor, viesse posteriormente a ser celebrado pelas mais respeitáveis instituições e por as altas autoridades oficiais. No entanto, foi isso mesmo o que sucedeu com o poeta Mário Cesariny (1923-2006), que é alguém de quem se comemora este ano o centenário do seu nascimento.
Como é que estas coisas acontecem, isso é coisa que não vos sabemos dizer. Há tanta gente que se porta tão bem, diz e faz o que é suposto dizer-se e fazer-se, anda sempre a direito e na linha, e nunca recebe aplausos nem agradecimentos de ninguém. Depois há outros, que levam uma vida de libertinagem, andam constantemente a pisar o risco e acabam aclamados e agraciados. Está mal!
Ainda em vida, mas já para o fim, quando começou a receber homenagens e condecorações oficiais, Cesariny comentou ironicamente esses momentos em que unanimemente o aplaudiam: "Estou num pedestal muito alto, batem palmas e depois deixam-me ir sozinho para casa. Isto é a glória literária à portuguesa."
Mas antes de começarmos a teorizar, vamos primeiro à Pastelaria, pois que afinal o que mais importa não é a literatura:
Tal como viveu, assim Cesariny escreveu. A sua poesia contesta sarcasticamente os comportamentos e costumes considerados normais e os princípios institucionalizados. Toda a sua escrita é um autêntico festival surrealista, há enumerações caóticas, frases sem-sentido, humor negro, paródias, trocadilhos, jogos verbais e muito mais.
Tudo o que acima dissemos, é a descrição oficial da sua obra, a que se pode encontrar num manual de literatura, numa enciclopédia ou na Wikipédia. Mas daquilo que nós hoje aqui vos queremos falar, é antes do seu profundo lirismo. Não queremos falar de sofisticados jogos de palavras, de elaborados malabarismos surrealistas com as palavras ou de inusitadas construções verbais, mas sim de coisas mais sentimentais.
Como já saberiam ou entretanto terão adivinhado, Mário Cesariny não era muito dado a amores platónicos, era muito mais dado aos prazeres do corpo. Ele próprio o escreveu, descrevendo-se a si mesmo num poema como um apreciador das decadências do Império Romano, que, como a história nos ensina, incluíam bastantes festas, abundante bebida e luxúrias sem fim:
Eu sempre a Platão assisto.
Pessoalmente, porém, e creia que não
Tenho qualquer insuficiência nisto,
Sou um romano da decadência total,
Aquela do século IV depois de Cristo,
Com os bárbaros à porta e Júpiter no quintal.
Talvez Cesariny não gostasse e nos desmentisse categoricamente, isso não o sabemos mas desconfiamos que sim, no entanto, e ainda assim, nós estamos capazes de afirmar que o poeta albergava também em si uma alma lírica e sentimental, com o seu quê de platónico.
No pedaço de poema abaixo, Cesariny diz conhecer tão bem um corpo, contudo, diz também que em todo o lado o encontra, mesmo não o sendo na sua forma carnal, mas sim naquela que se vê com os olhos fechados, ou seja, na sua forma sonhada e/ou imaginada. É inegável que há algo de platónico, quando um corpo nos aparece pela rua na sua forma sonhada ou imaginada:
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando…
Num outro pedaço de um outro poema, Cesariny volta a manifestar o seu desdém pelas coisas não carnais, ou seja, pelas intelectuais ou espirituais. Presumimos que o faz para reafirmar o seu apego às coisas corporais.
Nesse excerto de poema não se limita a falar de Platão, fala-nos também de Jesus e de Aristóteles, como se todos eles representassem uma espécie de antítese de quem ele era e de como vivia:
…má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão…
Todavia e mais uma vez, nós acreditamos que Cesariny não se deixava apenas enlevar pelos gozos carnais, mas igualmente por outros mais etéreos. Baseamos essa nossa crença no amor que ele sentia pelas palavras. Com efeito, o amor às palavras é impossível de se consumar fisicamente, ou seja, em princípio, tal consumação só pode ser platónica.
Para vos darmos um exemplo, em que esse amor às palavras se apresenta de um modo explícito, aqui fica mais um pedaço de um outro poema:
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
Mas este é apenas mais um pedaço, de muitos mais pedaços possíveis de muitos outros poemas em que esse amor às palavras é explícito na poesia de Cesariny. Entre tantos desses, um outro, poderia ser este:
…há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar…
Em qualquer dos casos, deixamos-vos aqui alguns eventos do centenário do nascimento de Cesariny por todo o país, para que os possam marcar na vossa agenda: entre 3 de outubro de 2023 e 18 de fevereiro de 2024, o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), em Lisboa, recebe a exposição “O castelo Surrealista”. O Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso, em Amarante, recebe também uma outra exposição centrada no poeta, de março a junho de 2024. Entre junho e setembro do próximo ano, será a vez do Centro de Arte Contemporânea de Coimbra. A Fundação Cupertino de Miranda, em Famalicão, dedica-lhe agora uma exposição, que dura um ano inteiro, já abriu e estará patente até setembro de 2024.
Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.
Terminamos agora, com mais um poema de Cesariny, “Há uma hora certa”. Este é acompanhado pela música de Rodrigo Leão. Surpreendentemente, as notas musicais do compositor e as palavras do poeta, e ainda que a sua criação esteja separada por décadas de diferença, envolvem-se intimamente umas com as outras. Como é que estas coisas acontecem não sabemos, tal e qual como não sabemos se esse envolvimento é ou não platónico. Fica ao critério de quem ouvir decidir:
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