Estávamos nós hoje pela manhã a ler a imprensa, quando nos deparámos com uma entrevista de uma arquiteta mexicana que ultimamente tem ganho um grande prestígio internacional. Como é natural, a esse propósito, lembrámos-nos imediatamente da burocracia nas escolas portuguesas.
Claro que a dita arquiteta, de seu nome Tatiana Bilbao, nada diz sobre as escolas portuguesas e com toda a probabilidade não faz a menor ideia da burocracia que nelas existe. O que sucede é que nós gostamos de fazer improváveis associações mentais, mas calma, que mais à frente todos irão perceber a nossa ideia, tenham confiança.
O recente prestígio adquirido por Tatiana Bilbao advém de nos seus projetos ela ouvir as populações e nada decidir sem que estas estejam completamente envolvidas em todo o processo. É um método muito pouco habitual de se trabalhar. É com base na construção de uma confiança mútua e na constante troca de ideias entre todos que daí resulta, que depois se constroem casas, hospitais, bairros e tudo o mais.
Primeiro constrói-se a confiança, a seguir constrói-se o resto. Ilustraremos este nosso texto com alguns seus desenhos que recentemente estiveram numa exposição dos seus trabalhos intitulada “En común”:
Lemos também no jornal a seguinte frase: “Tanto faz que tenhas ou não estudos, o teu trabalho consistirá sempre em enviar e-mails e em preencher folhas de Excel”. A frase foi publicada aqui há uns tempos numa rede social e tornou-se viral em Espanha. Originalmente estava escrita em espanhol, a tradução é nossa.
Uma das coisas de que esta frase nos fala, é da enorme quantidade de procedimentos administrativos que atualmente estão instalados por quase todo o lado. Em Portugal os professores queixam-se e com razão da burocracia, contudo, praticamente toda a gente se pode queixar exatamente do mesmo. Hoje em dia não se consegue dar um passo que seja sequer, sem antes e depois de o dar se ter de preencher uns papéis, enviar uns e-mails, uns SMS’s ou coisa do género.
Com tantos papéis, folhas de Excel e e-mails para enviar, é inevitável que cada vez haja mais gente ocupada com essas tarefas, mesmo que os empregos para os quais foram contratados nada tenham que ver com funções administrativas.
Numa muito rápida pesquisa na internet, encontrámos imediatamente notícias cujo tema era as queixas dos professores, dos médicos, dos polícias, dos agricultores e dos arquitectos relativamente à burocracia. Mais profissões procurássemos, mais queixas encontrávamos.
É nossa convicção, que o excesso de burocracia advém fundamentalmente da falta de confiança. O sistema não confia em nós e nós não confiamos no sistema.
É necessário um relatório, uma ata, uma folha Excel, um e-mail ou um qualquer outro documento que prove que isto ou aquilo aconteceu assim ou assado. Sem uma prova, nada feito. O sistema está construído de modo a que não se confie em ninguém, consequentemente, tem sempre de existir uma qualquer evidência ou registo para atestar tudo o que foi feito ou dito.
Basta que telefonemos para o serviço de assistência de uma qualquer empresa, para que imediatamente uma voz nos informe, que tudo aquilo que dissermos vai ser gravado, não se vá dar o caso de mais tarde virmos a dar o dito pelo não dito.
Em certo sentido, a burocracia resume-se a isto, à constante e crescente produção de provas daquilo que dissemos ou fizemos, do que comprámos ou vendemos, com
quem concordámos ou discordámos, do que fomos informados ou informámos, onde estivemos ou deixámos de estar e tudo o mais o que nos vai sucedendo pela vida afora.
Sendo este o contexto, o Ministério de Educação decidiu lançar um programa com vinte medidas para desburocratizar as escolas. Parece-nos que qualquer uma das vinte medidas é consensual, pois eliminam uma série de procedimentos burocráticos que é difícil de perceber por qual razão até aqui existiam.
No entanto, mesmo no fim do despacho ministerial de lançamento desse programa, há algo que potencialmente pode vir a ser um problema. O último parágrafo
determina a constituição de um grupo de trabalho em cada Agrupamento de Escolas com vista à simplificação de procedimentos internos administrativos e à elaboração de um manual de simplificação de práticas administrativas dos docentes.
Ora bem, ou muito nos enganamos, ou o grupo de trabalho a constituir para simplificar procedimentos vai ter abundantes e complicadas reuniões, das quais irão ser lavradas umas tantas extensas atas, que poucos ou nenhuns lerão e só servirão para atestar o que foi dito nas ditas reuniões.
Mas, pior do que isso, esse grupo terá ainda de elaborar um manual com os procedimentos a adoptar para simplificar outros procedimentos. É impressão nossa, ou a elaboração desse manual simplificador poderá vir a ser uma coisa um tanto ou quanto complicada de se fazer? A ver vamos. Nesse entretanto, aqui fica o despacho:
Caso esse tipo de decisões estivesse nas nossas mãos, resolveríamos rapidamente a questão. Havendo confiança, não eram cá precisos grupos de trabalho, atas e manuais de simplificação. Tudo seria muito mais simples. Convocávamos toda a gente e certamente que numa hora e tal, vá lá duas, se chegaria a um consenso alargado sobre quais os procedimentos a simplificar e como fazê-lo. Estamos até em crer, que na maior parte dos casos, não se chegaria apenas a um consenso alargado, mas sim a uma unanimidade.
No caso da simplificação dos procedimentos burocráticos nas escolas, a participação de todos provavelmente nem daria para grandes discussões, pois é mais ou menos evidente tudo aquilo que só atrapalha e complica. No entanto, noutros tempos, houve discussões muito mais complexas para as quais se chamava toda a gente.
Nesses tempos antigos havia confronto, troca de ideias, debates e divisões. mas também havia confiança e portanto não era com burocracias, e-mails, folhas de Excel e SMS’s e desconfianças que as coisas se resolviam.
Falemos por exemplo do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), que foi um programa estatal de construção habitacional surgido na década de 70, que se propunha colmatar as necessidades habitacionais de populações desfavorecidas.
A originalidade desse programa foi que os arquitetos, engenheiros e urbanistas encarregues dos projetos tinham frequentes e abundantes reuniões com as populações.
Todas as decisões eram tomadas nessas reuniões. Como hão de imaginar, eram encontros particularmente animados e conflituosos. Não era fácil para populações nada ou pouco letradas perceberem determinadas opções arquitetónicas ou urbanas. Tal e qual como não era também fácil para os técnicos especializados ter de debater de igual para igual com as gentes locais o que projetavam.
Em 2007 foi realizado um documentário sobre as operações SAAL, ou seja, sobre esse processo em que toda a gente foi chamada a participar. Aqui fica o trailer:
E com isto terminamos, na esperança que todos tenham percebido a improvável associação de ideias que aqui fizemos.
Comentários
Enviar um comentário