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Lisboa, essa Nápoles por suíços habitada



Não há ninguém que já não se tenha deixado enredar por isto ou por aquilo. Por vezes são enredos individuais, noutras são coletivos. Na imagem, apresentamos uma escultura que se encontra na Capela de San Severo em Nápoles. Simbolicamente, a escultura quer representar alguém que procura libertar-se das trevas, dos desenganos e da ignorância em que está enredado, foi essa a intenção explicita do seu autor. Popularmente, a escultura é conhecida como “Il Pescatore”.

Dantes, se algum professor fosse apanhado no emaranhado de redes que são os concursos de docentes e fosse colocado numa escola nas imediações do Largo do Intendente em Lisboa, deitava as mãos à cabeça, rezava a todos os santinhos para que o ano letivo passasse depressa e logo que pudesse, tentava libertar-se dali.

Há locais tão degradados socialmente e cuja influência é tão nefasta, que poucos são os que se aguentam. É tanto assim, que a ciência até comprovou que em termos de saúde, o código postal é tão importante para as nossas vidas quanto o código genético:


Quem antigamente alguma vez passou pelo Largo do Intendente em Lisboa, sabe bem os enredos e os degredos que por ali iam. Quem porventura trabalhou nas escolas circundantes, ainda o sabe melhor. Durante décadas, o largo foi um autêntico mostruário a céu aberto das muitas formas possíveis de se viver na marginalidade, nas trevas e na miséria.
Há pouco mais de dez anos, tudo começou a mudar para melhor. À época, numa reunião da Assembleia Municipal, o então presidente da câmara dizia assim: “Temos dois cafés no Intendente, mas temos de ter mais, para garantir que há ali vida e gente a circular”.

E foi isso o que subitamente sucedeu, passados apenas dois anos, em 2016, até o New York Times, na sua secção de viagens, já recomendava aos seus leitores uma visita ao antes mal-afamado largo. Citamos e traduzimos: “Durante muito tempo território de traficantes e prostitutas, o Intendente viu nos últimos anos os seus edifícios históricos convertidos em lojas giras, cafés e bares”.


O Largo do Intendente foi uma das mais bem sucedidas renovações urbanas de Lisboa. Onde havia tascas manhosas, duvidosos “night-clubs” e pensões a dois tostões, passou a haver pequenas galerias de arte, associações culturais independentes, cafés alternativos e lojas vintage. Organizaram-se festivais de música, de teatro, de ópera, feiras, debates, ateliers e muito mais.


O Largo do Intendente passou a estar na moda, sendo o mais incrível, que tudo isso tenha sido conseguido sem que a população local tivesse de ser desalojada e encaminhada para outras freguesias, para ser substituída por gente mais fina.

Ao longo destes últimos anos, foram imensos os projetos culturais desenvolvidos que contaram com a participação da comunidade local, incluindo os clubes recreativos tradicionais e também as escolas públicas, que vão desde a Mouraria até à Graça e ao Castelo. Por uma vez, tudo corria bem.

Corria, mas já não vai correr. Recentemente, o pessoal do dinheiro chegou ao largo, pois apercebeu-se que aí havia muito para pescar e lucrativos negócios para se fazer. Imediatamente dispararam os valores das rendas e os despejos começaram. Os projetos agora são outros, os mesmos de sempre na verdade, condomínios fechados e alojamentos de luxo de cadeias hoteleiras internacionais:


Infelizmente Lisboa, já para não dizer o resto de Portugal, é assim: tudo fica enredado perante os interesses imobiliários. Resignamo-nos passivamente a que as coisas sejam como são. Por vezes agitamo-nos e fazemos muito barulho por nada, mas lá vamos andando com a cabeça entre as orelhas, pacientemente à espera de melhores dias. Tudo isso há muito que foi dito num poema de Alexandre O’ Neill.


Neste poema, Alexandre O’ Neill refere-se a Nápoles, como que insinuando, que as gentes dessa cidade são a antítese das gentes de Lisboa e, em certo sentido, é isso mesmo que elas são.
Se comparássemos a marginalidade do antigo Largo do Intendente com a do bairro napolitano Sanitá, seríamos tentados a afirmar que o Intendente de então, por muito mau que fosse, ainda assim, era uma coisa para “meninos”.
Situado bem no centro histórico de Nápoles, o bairro Sanitá é o epicentro das guerras entre várias organizações mafiosas. É também uma das zonas mais pobres de Itália. Há notícias da sua existência desde os tempos do Império Romano, contudo, a sua atual configuração vem de há apenas cinco séculos, quando todo o bairro foi planeado e construído em torno de um cemitério seiscentista.

Situam-se no bairro imensas igrejas, monumentos e palácios históricos, porém, nada disso alguma vez atraiu muitos turistas, pois que os visitantes não eram particularmente bem-vindos e isso era perfeitamente explicitado no modo como eram recebidos.
Apesar de muitos desses lugares terem um horário oficial para visitas, praticamente nunca estava lá ninguém para abrir as portas ou para receber os visitantes, consequentemente, os poucos que se atreviam a lá ir, voltavam para trás e ainda tinham sorte se de caminho não fossem assaltados.
O bairro existia, mas unicamente voltado para si mesmo, quase completamente encerrado ao exterior. Para os seus habitantes era “uma coisa só nossa” ou, como se diz em Itália, era “cosa nostra”.

Tudo se passava exclusivamente entre quem lá vivia. Todos agiam como se fossem uma grande família. A rua e o interior das casas fundiam-se. O que se passava na rua entrava pela casa adentro e a rua acolhia os mais íntimos segredos das vidas de cada um. Em síntese, um típico ambiente de “La Famiglia”.

Com cerca de dois quilómetros quadrados e 32.000 habitantes, nem sequer as instituições oficiais se atreviam muito a entrar nesse território. Exista apenas uma escola primária, três escolas básicas e uma escola secundária, que era de longe a recordista em Itália do abandono escolar.


No entanto, nos últimos quinze anos, o panorama mudou bastante. Em 2008, um corajoso grupo de jovens nascidos e criados no bairro, decidiram que as coisas não são como são. Olharam à sua volta e viram beleza e esperança. Acreditaram que era possível desenredarem-se da marginalidade, da “cosa nostra” e de “La Famiglia”, fizeram-se à vida, deitaram mãos à obra e libertaram-se.

Fundaram então uma cooperativa, La Paranza, e propuseram às autoridades que os deixassem organizar excursões, visitas escolares e turísticas às históricas catacumbas de San Gennaro e de San Gaudioso, que se situam no bairro Sanitá. À data, ambas estavam praticamente abandonadas e eram quase inacessíveis. 

Começaram o trabalho com apenas seis pessoas, atualmente são quarenta, e entre estudantes, investigadores e turistas, recebem cerca de cento e sessenta mil visitantes por ano. É obra.

O sucesso da cooperativa La Paranza não se mede apenas pelo número crescente de visitantes, mede-se também como a pouco e pouco o bairro se foi abrindo e transformando.
Historiadores, estudantes, jornalistas, turistas e meros visitantes de passagem “obrigaram” a que se criassem serviços e a que prosperassem outro tipo de negócios, que não os ligados à marginalidade. Outros monumentos históricos começaram a abrir ao público, igrejas e palácios passaram a ser acessíveis e de repente, não mais que de repente, tudo era diferente.

Mas talvez a maior conquista de La Paranza, tenha sido a devolução da esperança à população de que uma outra vida era possível. O mote que os inspirou e inspira é uma célebre frase de Santo Agostinho: “A esperança tem duas lindas filhas, a indignação e a coragem; a indignação ensina-nos a não aceitar as coisas como são; a coragem, a mudá-las.”

Claro que com a reconversão do bairro os interesses imobiliários começaram a aparecer, todavia, lá, ao contrário de cá, não tiveram qualquer hipótese. Com gente que quer ganhar dinheiro custe o que custar, já os napolitanos do bairro Sanitá conviveram durante largas décadas e não desejam voltar a enredar-se nessas trevas.

Para terminar, e se porventura alguma vez passarem por Nápoles, não deixem de ir visitar as catacumbas, as igrejas, os palácios e outras maravilhas do bairro Sanitá. Aqui fica um site com informações de como fazê-lo:


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