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O milagre de Milão

Não sabemos se quem nos lê, alguma vez esteve em Milão e, caso tenha estado, se entrou na esplêndida e magnífica catedral dessa cidade e subiu ao seu alto. O que na verdade sabemos, é que um dia, há já muitos anos, Rocco (Alain Delon) e Nadia (Annie Girardot) lá estiveram. Confirmam-no as imagens que teremos para sempre com os dois no alto dessa catedral. Imagens filmadas pela lente da câmara de Luchino Visconti que fazem parte do seu imenso filme de 1960, “Rocco i suoi fratelli” (Rocco e os seus irmãos).

Nessa terrível cena no alto da catedral, Rocco abandona Nadia, a quem amava, explicitando-lhe as complexas razões pelas quais o faz. Sacrifica-se e sacrifica-a em prol do seu irmão mais velho, Simone, que também dela gostava.
Simone, ao contrário do meditativo Rocco, é uma alma simples, sente mas pouco pensa, é mais para o rústico e impulsivo. Nadia recusa-se a ser sacrificada, pois para além de tudo o mais, ama Rocco e não Simone. Contudo, a decisão de Rocco é absolutamente inabalável.
Mesmo quem nunca tenha visto o filme completo, ao ver esta cena, percebe imediatamente o quão dilacerante esse instante é, um dos mais belos e tristes momentos de toda a história da sétima arte:
No mesmo exato ano de 1960 em que foi realizado o filme “Rocco i suoi fratelli”, a estrela da canção italiana Adriano Celentano, então no auge da sua fama, põe-se defronte da catedral de Milão durante uma manifestação e canta para a multidão um dos seus maiores êxitos de sempre, “Impazzivo per te”. O que poderia ser traduzido para português como “doido/apaixonado por ti”.
Poucas coisas poderiam ser tão diferentes, como a cena de “Rocco i suoi fratelli” no alto da catedral e Adriano Celentano cantando na praça defronte dela. Todo este nosso texto, só fará sentido, para quem quiser comparar esses dois instantes, consequentemente, aqui fica o segundo, pois que o primeiro já o apresentámos anteriormente:

Como terão verificado, onde em “Rocco i suoi fratelli” havia uma atmosfera de tristeza e de iminente tragédia, em “Impazzivo per te”, o que há é um ambiente de alegria e exuberância.
Aparentemente, estes dois momentos, ambos passados no ano de 1960 e tendo como cenário a catedral Milão, podem parecer-vos contraditórios, porém, temos a ideia que não, que um e o outro são no fundo a cara e a coroa de uma mesma moeda, essa a que se chama vida.
A catedral de Milão começou a ser construída em 1386. A obra avançou rapidamente, e em 1418 foi consagrado o altar-mor pelo Papa Martinho V. A meio do século XV conclui-se a parte leste. A partir daí, as obras prosseguiram com alguma lentidão até finais do século XV. Entre 1500 e 1510 o interior foi decorado com estátuas. No século XVII foi construída a fachada. Em meados do século XVIII foi finalizada a parte externa da cúpula. Em 1805 foram realizados a maior parte dos detalhes exteriores. Só em 1813 é que a catedral foi finalmente terminada, ou seja, uns bons séculos depois do início das obras.

O que levou as sucessivas gerações de milaneses a não desistirem da sua catedral até a completarem? A resposta é simples, os milaneses, tal como todos nós, precisavam de ter um lugar marcante para se encontrarem nos momentos decisivos da vida. Quer na vida de cada um, pois a catedral é palco de batizados, casamentos e funerais, quer na vida coletiva, pois a praça que se estende diante de si, a Piazza del Duomo (Praça da Catedral), é o cenário que desde sempre recebe as celebrações, as festas e as manifestações dos milaneses.
É em redor da catedral, no seu interior ou até no seu telhado, veja-se o exemplo de Rocco e Nadia, que quase tudo se passa. A pouco metros dela há inúmeros cafés e restaurantes, as melhores lojas da moda, bons museus e tudo o mais que faz parte de uma grande cidade.
É junto dela onde há encontros e desencontros, onde se combinam e se anulam negócios, onde nascem e se desfazem amores, onde se cultivam e se terminam amizades ou onde se vai simplesmente passear e apanhar ar. A catedral é um símbolo arquitetónico da vida de cada um e da de todos.
Em dezembro de 2009, até as suas réplicas de metal, destinadas a ser vendidas como “souvenirs” a turistas, ganharam um valor simbólico quando Silvio Berlusconi foi atingido com uma delas. Nessa ocasião, as réplicas da catedral bateram recordes de venda e esgotaram-se em todas as lojas, passaram a ser um símbolo de oposição ao governo do então primeiro-ministro de Itália.

É uma profunda necessidade humana que haja lugares de encontro como a catedral de Milão, nos quais em si e à sua volta decorre o quotidiano, que é feito de momentos marcantes e de outros banais, mas esses lugares, para além de serem do dia-a-dia, são simultaneamente símbolos da vida individual e coletiva e não simples espaços ou construções.
Todas as comunidades que verdadeiramente o são, tem lugares desses, é uma necessidade milenar. Por exemplo, Stonehenge, que foi erguido em 3100 a.C., foi certamente um desses lugares onde as gentes se reuniam para falar, para observar, para rezar, para decidirem quando e o que semear e, sobretudo, para se encontrarem.
Nas últimas décadas surgiram outros pontos de encontro que até então nunca tinham existido, os virtuais. Há agora por todo o lado imensas comunidades cujo ponto de encontro não é uma praça ou uma catedral, mas sim uma rede social, uma App ou um Chat. Nada contra, muitas são úteis e/ou engraçadas. Contudo, o que não deveriam ser e algumas vezes são, é o ponto de encontro de frustrações, de más educações e de ódios de estimação.
Há muito que nas escolas, os encarregados de educação têm o costume de se constituir como um grupo virtual. Se nalguns casos corre bem, há muitos mais em que corre mal. Em Espanha os problemas nas escolas por causa dos pontos de encontro virtuais começaram logo em 2015, como se pode comprovar por esta reportagem do jornal catalão La Vanguardia:
Em Inglaterra, de vez em quando, também há problemas:
E claro, problemas, também os há em Portugal:
Uma das formas de percebermos como é que uma coisa que à partida parecia útil e engraçada, acaba por vezes por se transformar num problema, é vermos qual foi a evolução dos grupos virtuais de vizinhos de uma determinada zona. Alguém decide formar um grupo numa rede social e coloca on-line uma série de fotografias antigas do bairro. Em poucos dias houve dezenas de comentários: “Eu vivia aqui” diz um. “Nesse banco de jardim passei eu muitas manhãs quando era pequeno”, afirma um outro. “Recordo-me perfeitamente do padeiro e da loja esquina”, escreve uma vizinha. “Belas recordações!”, diz ainda mais alguém e, por enquanto, tudo corre bem.
Passado algum tempo, não muito, alguém introduz a semente do conflito: “Que bonito era o bairro antigamente e que feio está agora”. Surgem comentários que aludem à falta de segurança nas ruas, à recolha do lixo, aos buracos na calçada e a quem pertence a responsabilidade. As respostas e contra-respostas multiplicam-se, cada um defende uma coisa diferente e os comentários tornam-se cada vez mais agressivos. A tensão cresce e alarga-se a outros assuntos e pessoas que já nada têm que ver com o bairro e de repente, uma inocente fotografia a preto e branco provocou uma autêntica batalha virtual.
Esta história não a inventámos, foi algo semelhante ao que contámos que sucedeu com vários grupos virtuais de vizinhos, há relato disso nos jornais. 

Uma história que essa sim, certamente foi inventada, é a do filme “O milagre de Milão”.
Totó é um jovem ingénuo, acabado de sair de um orfanato. Um vagabundo acolhe-o numa noite de intempérie e depois disso ele decide organizar uma “cidade da felicidade” para os indigentes num terreno baldio.
Passado pouco tempo, já são muitos os que lá vivem felizes e contentes. Mas, ao descobrirem que naquele lugar há petróleo, as autoridades resolvem expulsá-los. Após muita resistência, acabam por ser todos levados à força em carroças fechadas para um outro lugar.
No caminho, ao passarem em frente à catedral de Milão, dá-se um milagre na forma de uma pomba que é entregue a Totó pela sua avó, que desce do céu. As carroças onde estavam aprisionados abrem-se, todos pegam nas vassouras de funcionários da limpeza que por ali andavam a varrer, e voam sobre a catedral de regresso à sua “cidade da felicidade”.


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