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Se és monodocente, tens mais onze anos pela frente


Foi há dias publicada uma notícia, segundo a qual, em Portugal, os educadores e os professores do 1º ciclo trabalharão ao longo de toda a sua carreira, o equivalente a cerca de 11 anos letivos a mais do que os colegas de outros ciclos de ensino.  

Tal situação deve-se ao facto de para além de terem mais horas letivas, cada tempo letivo ser contado em horas, sendo que, no caso dos professores do 2.º e 3.º ciclos e secundário, o tempo letivo ser contado de maneira diferente, ou seja, cada tempo equivale a 45 ou 50 minutos, e não a todos os 60 minutos de uma hora.  
Em conclusão, feitas as contas, há uma diferença de 400 minutos semanais de trabalho letivo entre os monodocentes e os restantes.

Aqui fica a notícia para quem a quiser ler: 

 
Esta desigualdade laboral entre docentes é um dos problemas que decorre da monodocência, outros haverá, ou se calhar não. Para lá das questões laborais, a realidade é que em Portugal as vantagens ou desvantagens pedagógicas da monodocência nunca foram publicamente debatidas mesmo a sério.  

Há quem assegure que sim, que é melhor assim tal e qual como está, há quem jure que não, e há quem nem diga que sim nem que não. Consequentemente, à falta de melhor opinião, vai-se fazendo como sempre se fez. 

Em boa verdade, não se faz exatamente como sempre se fez, pois nos últimos anos são muitas as escolas em que vão surgindo projetos, novas disciplinas e outras iniciativas, que não eliminando completamente a monodocência, implicam a existência de pares pedagógicos e de aulas coadjuvadas. 
É algo que há muito consta da lei: «No 1.º Ciclo, o ensino é globalizante, da responsabilidade de um professor único, que pode ser coadjuvado em áreas especializadas» (Decreto-Lei n.º 241/2001, de 30 de Agosto). 
 
Há uns quatro anos, em Angola, as questões pedagógicas relacionadas com a monodocência fizeram correr muita tinta. Com efeito, pouco tempo após de, no âmbito de uma ampla reforma educativa, ter sido implementado em Angola um regime de monodocência do 1º ao 6º ano, acabou por se concluir que essa decisão tinha sido um tanto ou quanto precipitada. Em síntese, um erro. Aqui fica a notícia; 
 

Independentemente do que sucedeu em Angola, é certamente do senso comum que a monodocência favorece uma relação mais próxima e afetiva entre alunos e professores, e isso é inegavelmente uma vantagem, sobretudo nas mais tenras idades. Contudo, é também do senso comum, que quer professores, quer alunos beneficiam do contacto com uma pluralidade de modos de trabalhar e de ensinar e, nessa perspetiva, a monodocência é seguramente uma desvantagem.
 
Assim sendo, talvez o problema não deva ser colocado de um modo extremado, ou seja, se sim ou não à monodocência. Talvez o mais sensato seja ir-se implementando antes qualquer coisa de intermédio. Nesse contexto, repetimos o que já acima dissemos, ou seja, provavelmente o melhor é que haja cada vez mais projectos, novas disciplinas e outras iniciativas, que não eliminando completamente a monodocência, implicam pares pedagógicos e aulas coadjuvadas.  

Uma vez chegados à conclusão de que talvez uma crescente implementação de pares pedagógicos e de aulas coadjuvadas seja uma coisa boa, isso de modo algum anula a desigualdade laboral de que sofrem os monodocentes. Isso é um outro assunto.

Para essa desigualdade não temos solução, é algo que não está na nossa mão, temos apenas um poema a modos de consolação.

Um poema de Camões que nos conta à história de Jabob que como pastor serviu Labão, pai de Raquel, na esperança que este lhe a desse. Não deu. Findos os sete anos, propôs-lhe antes Lia, a irmã. Mais remédio não teve Jacob, que servir a Labão sete anos mais.

Em síntese, a consolação poética é a seguinte: como monodocente têm mais onze anos pela frente, mas se fossem Jacob, eram sete mais sete, ou seja, catorze, os que tinham a mais para trabalhar. Feitas as contas, relativamente a Jacob, são três anos a menos. Que bom, não é?

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando se com vê la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;

Começa de servir outros sete anos,
dizendo: “Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida!”


“Jacob, Labão e Raquel”, pintura de Nicolas Vleughels
          


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