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Lisboa não sejas francesa


INSPIRAÇÃO / INTENÇÃO - Foi então que um artista conceptual decidiu pegar numa simples ampola de vidro e enchê-la com o ar de Paris. O seu nome era Marcel Duchamp. O título da obra é “50 cc of Paris Air”. Estávamos em 1919. Após essa primeira versão, houve muitas outras pelo mesmo artista. Uma das mais célebres é a de 1964, que está no Centre Pompidou e cujo título é “Air de Paris”. Basicamente é praticamente idêntica à de 1919, só o ar é que é diferente.
Uma ancestral instituição cultural norte-americana, o Philadelphia Museum of Art, há quase um século que adquiriu a versão de 1919. Só que em 1949, a ampola partiu-se e a obra de arte teve que ser restaurada. Foram muitos os filósofos e críticos de arte que então se perguntaram, será que após o restauro, o ar no interior da ampola ainda é o de Paris ou é antes o de Filadélfia? E não sendo o ar o mesmo, será que a obra de arte ainda é a original ou é já outra? Ser ou não ser, eis a questão.
A foto acima é de uma loja na Rua do Carmo em Lisboa. “Au Bonheur des Dames” é o título de um célebre romance de Émile Zola, que nos fala do surgimento das grandes catedrais do consumo na Paris de finais do século XIX. Catedrais que rapidamente iriam ser copiadas por todas as principais cidades da Europa.
Nesse tempo, o epicentro era Paris, mas as réplicas chegaram a Portugal, e com particular intensidade ao Chiado em Lisboa. Foi aí que surgiram os Armazéns do Chiado, os Armazéns Grandella, a loja de moda Paris em Lisboa e tantas outras.
No Porto também se sentiram os efeitos do sismo, à época foi aberta a Rua Galeria de Paris, onde nas décadas posteriores existiram populares armazéns e lojas nas quais se podiam adquirir os mais modernos e finos tecidos.
No Porto, em Lisboa e em qualquer cidade que se prezasse deste país, todos queriam SER como as gentes de Paris.
Criámos um guião de aprendizagem a que demos o título "Ser ou não ser, eis a questão". Como todos saberão, a expressão é de William Shakespeare e aparece na sua imortal peça teatral, Hamlet.
O significado original da frase é um tanto ou quanto metafísico, contudo, nós quisemos usá-la de um modo mais simples e concreto, de modo a refletirmos com os alunos acerca das metamorfoses que as cidades têm sofrido por conta do turismo de massas.
São tantas as transformações, que muitas cidades deixaram de ser o que são, e isso é uma questão que a todos deveria importar discutir e falar. Neste entretanto, aqui fica o guião e a respetiva ficha de exploração:


Talvez tal tipo de questão vos pareça ser demasiado complexa para alunos tão pequenos, todavia, não o é. Nem para eles, nem para ninguém. Tenham tenra idade, sejam já idosos ou estejam no auge da vida, todos se apercebem das grandes mudanças ocorridas nas nossas cidades nos últimos anos.
Em boa verdade, não vale a pena falar de cidadania nas escolas, se não for para pensar sobre as questões que efetivamente moldam a cidade e os seus cidadãos e, nesse contexto, nada provocou tantas alterações nos tempos que correm, como o “boom” turístico.
Gentes que há muito viviam em certos bairros tradicionais tiveram de se mudar, negócios locais de décadas deram lugar a lojas de souvenirs, as rendas dispararam, ruas antes pacatas são agora invadidas por multidões, bares abrem esplanadas nos mais improváveis recantos, “rooftop’s” pululam pelos telhados, há imensos hosteis e quem diga ser o melhor a confecionar pastéis. Se são ou não são, eis a questão.
O fenómeno é relativamente recente em Portugal, mas há muito que existe noutros locais. Veneza é certamente o exemplo mais paradigmático de como uma cidade que durante séculos teve as suas gentes, em poucos anos passou praticamente a só ter visitantes.
Veneza que chegou a ser uma das mais populosas e importantes urbes da Europa, tem hoje menos de 50 000 habitantes, número equivalente ao de uma pequena cidade de província.
Veneza deu em tempos luz a algumas das mais extraordinárias personalidades de que há memória, como por exemplo, o explorador Marco Polo ou o grande aventureiro Casanova.
Também em Veneza nasceu e viveu Vivaldi, o compositor de “As Quatro Estações”, a quem na sua época, devido aos seus ruivos cabelos e a exercer de sacerdote, chamavam o padre vermelho.
São ainda gente de Veneza, pintores que com as suas cores e pincéis mudaram o mundo da arte, como por exemplo, Bellini, Ticiano, Tintoretto ou Canaletto.

Por tudo isto, é triste que hoje em dia Veneza seja apenas uma espécie de Disneylândia, cuja principal atividade seja vender bugigangas e servir pizzas e massas às gentes que por lá pairam e passam. Em síntese, a Veneza de agora, já não é a Veneza de sempre. Ser ou não ser, eis a questão.
Talvez a este propósito possamos dar uma sugestão literária a quem nos lê, o romance “Grand Hotel Europa”. O livro, para além de nos narrar uma história de amor dos tempos atuais, conta-nos também como cidades tão antigas como Veneza ou Amsterdão, se transformaram radicalmente por causa do excesso de turismo.
“Grand Hotel Europa” é certamente uma das melhores e mais interessantes obras da literatura europeia dos últimos anos, que vale muita a pena ler.
No guião de aprendizagem “Ser ou não ser, eis a questão”, tentámos trazer todos estes temas para a sala de aula. Centrámos a nossa narrativa em Lisboa, mas esta poderia de igual modo ser centrada no Minho, no Porto, em Coimbra, em Évora ou no Algarve, ou seja, em qualquer lugar em que, por causa do turismo, de repente tudo mudou.
Ser ou não ser é um tema vasto, aplica-se a cidades, mas poderá de igual modo ser aplicado a muitas outras situações. Foi por isso que fomos buscar para este guião uma célebre tapeçaria, que faz parte da coleção do Museu Calouste Gulbenkian: “Vertumno e Pomona”.
A tapeçaria representa a história de amor entre Vertumno e Pomona, sendo provavelmente das mais famosas peças da coleção Gulbenkian. Uma das primeiras vezes em que foi contada, terá sido na obra de Ovídio (43 a.C - 18 a.C.) intitulada “As Metamorfoses”.
Vertumno, é o deus dos jardins e dos pomares responsável pela mudança das estações. Pomona é a deusa da abundância dos frutos e vive recolhida, dedicando-se exclusivamente aos seus afazeres. Dona de uma grande beleza, cativa a atenção dos vários deuses, que a tentam, sem êxito, seduzir.
Fazendo uso do seu poder para mudar de figura, Vertumno tenta igualmente conquistar a deusa, usando para isso os mais variados disfarces, mas tudo é em vão. Desesperado, transformar-se numa idosa, procurando convencer Pomona das virtudes do casamento. Quando também esta tentativa falha, Vertumno decide assumir a sua própria aparência e Pomona imediatamente se apaixona por ele.
A lição é simples, só quando Vertumno apareceu a Pomona no seu SER, esta o tomou por amante, antes disso, ele nada era para ela, apenas aparições do NÃO SER. É essa a questão e a moral desta história.

Dito isto, o nosso guião de aprendizagem “Ser ou não ser, eis a questão”, termina com uma canção muito popular noutros tempos. É exatamente do mesmo modo que terminamos, com ”Lisboa não sejas francesa”:

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