Desde sempre que alunos das mais distintas idades perguntam a pais, avós e professores, mas por que tenho eu de ir à escola? Por que não posso antes ficar a brincar, a jogar, a dormir ou a fazer o que bem me apetecer? Possivelmente, muitos dos adultos que atualmente são pais, avós ou professores, quando eram crianças, também fizeram igual pergunta, ou seja, mas por que tenho eu de ir à escola?
É certo que quer as crianças de antigamente, quer as de agora, sabem perfeitamente qual é a resposta à sua questão: vai-se à escola para se crescer, aprender e poder ser-se alguém na vida.
Mas dito isto, quem não se recorda de em criança ou jovem acordar estremunhado numa manhã fria ou pelo contrário revigorado num lindo dia de primavera, e de desejar intensamente não ter de ir à escola, nem que para tal tivesse de haver um qualquer cataclismo universal?
Tudo servia, desde que nesse dia a escola não abrisse. Tanto fazia o que fosse, podia ser um meteorito vindo do espaço sideral, uma bomba atómica, uma invasão de seres extraterrestres, o fim do mundo ou uma simples greve dos professores, o que importava era que a escola estivesse fechada e não houvesse aulas.
Digamos que é pura e simplesmente humano, que haja dias, sejam estes de chuva ou de sol, em que não nos apetece fazer o que temos para fazer. Como disse Pessoa:
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
Contudo, o mundo de hoje não tem contemplações com preguiças. Está sempre tudo a rodar, pois a economia não pode parar. Desde manhã cedo, até que seja noite escura, as crianças são deixadas nas escolas, cuja atividade não se limita como outrora apenas às aulas, mas inclui também Atividades de Enriquecimento Curricular, Componente de Apoio à Família e outras coisas mais. A miudagem anda num rebuliço desde o acordar até ao deitar.
A designação oficial para tudo isto é “Escola a Tempo Inteiro”. A maioria dos pais e encarregados de educação têm empregos com horários exigentes e não tem outro local onde deixar a pequenada desde as oito da manhã até às sete da tarde, que não seja o edifício escolar.
Em síntese, vivemos num mundo muito diferente daquele de há não assim tanto tempo, em que se estava na escola quatro a cinco horas por dia e depois se ia para casa ou para rua jogar e brincar.
Uma das maiores empresas nacionais, uma daquelas que faz com que a nossa economia nunca pare, é a Sonae, um grupo multinacional proprietário de hipermercados, centros comerciais, telecomunicações, lojas de artigos desportivos, de eletrodomésticos e de muitos outros negócios.
Nós não sabemos que tipo de horários de trabalho são praticados nesse grupo empresarial, sabemos sim que lojas, hipermercados e centros comerciais estão abertos desde manhã até altas horas da noite, incluindo fins de semana e feriados. Talvez por essa razão, os trabalhadores do referido grupo se queixem, e de acordo com notícias saídas esta semana nos jornais, exijam “horários humanizados que permitam a conciliação da vida profissional com a familiar e pessoal”.
Também nesta semana, o mesmo grupo Sonae, organizou em Lisboa um evento de grande categoria internacional, o Innovators Forum’23, cujo objetivo era debater o futuro da educação.
Um dos convidados de honra do Innovators Forum’23 foi Sugata Mitra, um reputado professor que leciona nas mais prestigiadas universidades internacionais, e que para além de ser cientista em computação, teoriza também sobre o futuro da educação.
Sugata Mitra tornou-se mundialmente conhecido pelo seu trabalho no projeto educativo Hole in the Wall. O método de aprendizagem aplicado nesse projeto é baseado na ideia de que as crianças são naturalmente curiosas e capazes de aprender autonomamente, sendo apenas necessário um mero computador com acesso à Internet para que o façam.
Em 1999 foi levada a cabo uma primeira experiência no âmbito do projeto Hole in the Wall. Em Nova Delhi, capital da Índia, num gigantesco bairro altamente degradado, onde nem sequer existe uma escola, foram colocados num quiosque uns computadores aos quais as crianças locais podiam aceder livremente, sem qualquer tipo de ajuda ou supervisão.
Verificou-se então, que as crianças rapidamente começaram a usar os computadores do quiosque para efetuar pesquisas e para aprenderem os mais diversos tipos de conteúdos. Para além disso, iam-se ensinando umas às outras.
Posteriormente foram realizadas semelhantes experiências em muitas zonas rurais da Índia e também no Cambodja, no Peru e no México.
No México, o projeto Hole in the Wall causou uma grande sensação mediática, pois uma criança que cresceu numa barraca próxima de uma grande lixeira, obteve uma brilhante nota nos exames de matemática.
Segundo se diz, tal nota resultou do seu professor primário ter implementado o método de Sugata Mitra na sala de aula. Deixou que a aprendizagem dos alunos se fizesse exclusivamente através do uso autónomo de computadores, e com o mínimo dos mínimos de intervenção do docente.
O nome da criança é Paloma Noyola Bueno e o seu sucesso ultrapassou as fronteiras do México, tendo inclusivamente chegado a capa da revista Wired:
Sugata Mitra acredita que o método de aprendizagem por conta própria apresenta várias vantagens, pois é flexível e adaptável às necessidades individuais das crianças. Essas suas crenças foram amplamente divulgadas ao longo das duas primeiras décadas do século XXI e há uma forte corrente de opinião, que daí surgiu e crê naquilo a que agora chama “Minimally invasive education”.
Como a própria designação sugere, “Minimally invasive education” é um método de aprendizagem em que não é preciso uma escola ou um professor para quase nada. O pressuposto é que as crianças conseguem aprender mais e melhor sozinhas, e que as invasoras interferências do pessoal docente, atrapalham mais do que ajudam.
Aqui fica uma entrevista com Sugata Mitra, para quem quiser conhecer com mais detalhe as suas ideias, sendo que algumas delas, que não todas, nos parecem bastante interessantes:
Nós não temos dúvidas que proporcionar o livre acesso a computadores a crianças e jovens que vivem em bairros altamente degradados por esse mundo fora, é uma coisa boa e louvável.
Também não temos quaisquer dúvidas, que quanto mais autónomos os alunos forem, melhor, contudo, daquilo que temos muitas e legítimas dúvidas, é que se possa considerar as escolas e os professores como entidades invasoras, que só atrapalham a natural aprendizagem dos alunos.
“Se um professor pode ser substituído por uma máquina, então deve-o ser”. A frase é de Sugata Mitra e pode ser interpretada de duas formas quase opostas, ou que um verdadeiro professor faz sempre algo que nenhuma máquina pode fazer e portanto nunca poderá ser substituído, ou que só há vantagens para as aprendizagens em substituir rapidamente os professores por máquinas.
Mas não falemos sequer de coisas tão arrojadas e quase de ficção científica, como substituir professores por máquinas, falemos antes de coisas mais terra-a-terra.
Uma das anunciadas vantagens do método Hole in the Wall é a de que as crianças e jovens aprenderão mais e melhor, se porventura o fizerem nas horas e momentos em que estão verdadeiramente dispostas a aprender, não tendo assim de estar sujeitas a cumprir os rígidos e fixos horários escolares.
Mas agora perguntamos nós, e se muitas crianças e jovens só se sentirem motivados para a aprendizagem a partir das dez ou onze da manhã, uma vez que antes dessas horas estão ensonados e preferem ficar mais um bocado na cama, em vez de virem logo às oito ou às nove para a escola?
Há muitos estudos científicos que comprovam, que começar as aulas cedo prejudica as aprendizagens. Veja-se um artigo do Público (jornal que é propriedade da Sonae) a este propósito:
Imaginemos então a seguinte situação, ao invés das escolas abrirem às oito ou às nove, passariam a abrir às dez ou às onze. Será que nessa eventualidade, as entidades empregadoras, nomeadamente os grandes grupos empresariais, iriam aceder a que os seus trabalhadores só começassem a sua jornada laboral depois de deixarem os respetivos filhos na escola? Lá por volta do meio-dia?
E já agora, que saíssem também mais cedo, e não fossem buscar a criançada à escola só quando já é noite escura? É que estar todo o santo dia enfiado num mesmo sítio, também não ajuda nada a ter-se predisposição para se aprender. Uma última pergunta, será que alguém levantou estas questões no Innovators Forum’23? Estavam lá presentes todos os administradores e CEO’s da Sonae, talvez fosse de se lhes perguntar, mas de certeza que ninguém o fez.
Desde sempre que alunos das mais distintas idades perguntam a pais, avós e professores, mas por que tenho eu de ir à escola? Por que não posso antes ficar a brincar, a jogar, a dormir ou fazer o que bem me apetecer? Possivelmente, muitos dos adultos que atualmente são pais, avós ou professores, quando eram crianças, também fizeram igual pergunta: mas por que tenho de ir à escola?
Mas tudo isto pertence ao passado, pois que no inovador futuro educativo que aí vem, todos irão à escola quando e se quiserem. Se não forem também não faz mal, pois a bem dizer, o mais que iriam lá encontrar eram professores com orientações para interferir o menos possível nas aprendizagens.
Para terminarmos esta reflexão, esclarecemos todos que nos lêem, que nós somos totalmente a favor da inovação em educação, todavia, de uma inovação em que haja escolas e professores, e não apenas uma “Minimally invasive education” e uns quantos computadores.
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